quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O Cabaz

Chegou a época do Natal, e a dos cabazes.

Cabaz é um termo que significa um conjunto de produtos. Mas, no nosso contexto, ele é quase sempre associado à oferta que se vulgarizou fazer nesta época do ano, e que inclui frutos secos tais como nozes e avelãs, vinho, bacalhau e azeite doce.

O cabaz parece-me mais um anacronismo que está a custar a passar. Sem nunca ter feito muito sentido, em particular no que respeita à sua composição, a sua popularidade explicava-se, num período de muito menos oferta do nosso comércio, pois permitia ter algo diferente numa época especial para a maioria das pessoas. Afinal, o bacalhau não deixa de ser peixe seco, e sempre enriquecer o calulu, mesmo se não for regado com azeite doce… Mas hoje, não faz o mínimo sentido. Em particular quando o mesmo é imposto. Os trabalhadores, sejam eles de uma instituição pública ou privada acabam por receber um prémio não necessariamente do seu agrado, quando seria muito mais lógico eles receberem esse prémio em dinheiro, e poderem aplicá-lo onde e como bem entendessem. Não consigo deixar de imaginar alguém que precisa de uma ajuda ao orçamento familiar para comprar algo importante para os filhos, ou para eles próprios, e que chegam a casa com avelãs e nozes, e, os mais afortunados, com uma garrafita de vinho do porto.

O que me parece essencialmente prejudicial no cabaz é a forma como ele fere todo o tecido económico nacional, e coarta a liberdade de escolha de quem o recebe compulsivamente. Promovendo produtos importados, ele impede que os que são produzidos localmente sejam seleccionados. E isso não só não é um estímulo para a economia como é particularmente injusto para quem está a investir numa rede comercial de qualidade, pois uma parte considerável dos cabazes vem em processos de importação directa, em particular para as grandes empresas públicas e privadas, agregando muito pouco a um mercado em expansão e cheio de vitalidade. Por outro lado, quem recebe, acaba por ficar com produtos que dispensaria. O mesmo se passa com a distribuição de brinquedos…

É importante enfatizar que não tenho nada contra quem goste de bacalhau, ou nozes. Eu, até gosto! Ou contra quem pretenda oferecer brinquedos aos seus filhos. Estão no seu direito. O que me parece é que devemos deixar as pessoas fazer as suas próprias escolhas. E, se tiver que haver alguma promoção, em particular através de aquisições financiadas pelo Estado ou instituições estatais, que tal incida sobre produtos produzidos localmente. Caso contrário, estamos a dar tiros no nosso próprio pé. Uma das consequências negativas da globalização é a criação de hábitos que só beneficiam quem tem mais poder de persuasão através de mecanismos de publicidade. E quem domina os media são os ditos países do primeiro mundo.

As modas alteram velhos hábitos, criam novos, e têm sempre a intenção de vender. Se concordamos que não temos que ser escravos do tradicional, e entendemos a mudança, pensamos ser necessário estar atentos às implicações económicas que a mesma promove. E isso não é xenofobia, é pragmatismo.

A Vitória do Mérito

Não sou dos que acreditam em milagres. Prefiro acreditar que os resultados são a consequência do sacrifício consentido, do trabalho, e da capacidade que se tem de análise da situação sobre a qual se pretende intervir. Estou consciente que nem sempre o resultado é directamente proporcional ao esforço desenvolvido. A quantidade de factores que pode influenciar o resultado, em particular em experiências com forte componente social, é tão grande, que nunca é possível saber com absoluta certeza o que vai finalmente acontecer. E é claro que quando há factores que influenciam o resultado, tal como a corrupção, o nepotismo ou o preconceito, pode não haver esforço que resulte.

A vitória de Obama foi uma pedrada no charco da política tal como usualmente é feita. Se é verdade que o estado actual da economia americana, e a sua precária posição internacional, onde o nível de contestação às suas políticas está em crescendo, criaram condições especiais, que acabaram por afectar o órgão mais sensível dos americanos, o bolso, não deixa de ser notável a eleição de um presidente de uma das minorias, num país tão marcado por fracturas criadas na base do preconceito. Há, no entanto, um enorme conjunto de perigos na sua trajectória como presidente do país mais poderoso do mundo, o mais pequeno dos quais não é, certamente, o excesso de expectativa que todos têm no seu desempenho. Como me disse um amigo, parece que chegou o novo Messias! E aí voltamos aos milagres…

Os desafios que se colocam a Obama são enormes. Ele tem não só que reverter a tendência da economia nos Estados Unidos, como melhorar a prestação ambiental resolvendo o problema energético e não afectando a competitividade da indústria, manter o papel de liderança do seu país sem ferir as pretensões dos seus aliados, controlar as potências emergentes, sair do Iraque com um mínimo de dignidade, combater os extremismos, agradar aos seus eleitores e ainda ser o ‘nice guy’ que todos esperamos que olhe para o Terceiro Mundo de forma diferente.

Não podemos esquecer que o poder de qualquer presidente, e em particular nos Estados Unidos da América, não é tão absoluto como se pode pensar. O homem mais poderoso do mundo tem que satisfazer uma infinidade de grupos de pressão, para além de lobbies poderosíssimos como o dos petróleos e o da indústria do armamento. E tem que sobreviver!

Mas o importante desta eleição é que parece que estamos perante alguém que não só é brilhante, mas genuíno nas ideias e posições que defende. Alguém que não parece; à partida, comprometido com os elementos mais nocivos do sistema, mas que, pelo contrário, tem um assinalável percurso de intervenção social. Alguém que herdou uma situação que lhe permite pensar na mudança de uma forma muito mais radical que os seus antecessores, pois existe uma predisposição para tal, dada a gravidade da situação. Alguém que foi eleito, apesar de todos os obstáculos que lhe foram colocados. Apesar dos fantasmas que foram sendo evocados.

O importante desta eleição, foi termos assistido a algo diferente, bom e reconfortante: uma rara vitória do mérito sobre o preconceito.

Uma lição sobre a qual nos cabe reflectir.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Coordenação, Legitimidade e Representatividade nas OSC

O Quê?
O que tenho a dizer está estruturado em quatro partes:
(1) Alguns conceitos. Não propriamente definições ou uma abordagem teórica. Apenas uma introdução sobre o sentido que dou a alguns dos termos.
(2) Realço alguns elementos do nosso ponto de partida. Qual é a nossa realidade actual nestas questões de coordenação, representatividade e legitimidade.
(3) Identifico alguns desafios que me parecem comuns, e preocupantes.
(4) Sugiro sobre possíveis mecanismos para melhorar a coordenação e a criação de estruturas representativas e legítimas, e, por isso, mais eficazes

O significado que dou a algumas destas palavras
Legitimidade é algo relativo. Ninguém tem legitimidade em relação a tudo nem em todos os momentos. A legitimidade pode ser dada pelo quadro legal, por aspectos culturais (por exemplo, muitas vezes considera-se que um mais velho tem mais legitimidade para se pronunciar sobre determinado assunto do que um jovem). Há pois toda uma série de regras na sociedade, que conferem, ou retiram, legitimidade a alguém ou a um grupo, para fazer ou dizer algo. Eu posso ter legimidade para falar como representante de um grupo se esse grupo me tiver dado um mandato para isso. O conhecimento, a experiência, o reconhecimento público, o ter recebido um mandato de alguém, são tudo possíveis fontes de legitimidade. Vamos ver, mais à frente, que temos por vezes problemas com isto, na prática.

Representatividade? Porquê recorrer a mecanismos de representação? Porque o exercício directo dos nossos direitos é, por vezes, difícil. É difícil que todos nós possamos participar em todas as discussões que nos dizem respeito. Uma possível solução é escolhermos alguém que nos represente. A representação permite-nos assim participar de forma indirecta. Participar por interposta pessoa ou organização.

Coordenação? Demasiadas vezes, e erradamente, associada com chefiar e mandar. Infelizmente não se dá suficiente atenção às funções que permitem coordenar: a troca de informação e o concertar da tomada de decisões. Tornar a acção de um conjunto de indivíduos ou de um conjunto de organizações em algo harmonioso, consertado e com um propósito comum.

Sociedade Civil? Não um sector ou um conjunto de organizações. É mais um espaço onde vários tipos de organização se movimentam e vários tipos de interesses se negoceiam. É comum que o Estado (entre nós, em Angola, e noutras paragens) também use actores para agirem no espaço da sociedade civil. Este espaço de negociação é claramente diferente do espaço do Estado ou do mercado.

Como estamos em termos de coordenação, legitimidade e representatividade nas OSC
Temos plataformas que são tratadas como representando outros. Temos, por exemplo, a UNACA (União Nacional das Cooperativas de Angola, creio), uma organização que se apresenta como representando as cooperativas de Angola e, outro exemplo, o FONGA (Forum das Organizações Não Governamentais Angolanas) que se apresenta como representando as ONGs Angolanas. Ambas são tratadas pelos doadores, pelo Estado e por muitos de nós, como representando as cooperativas e as ONGs, respectivamente. Mas, não existem processos activos para garantir que estas organizações de organizações sejam realmente legítimas para a função que dizem ter (entre outras, representar aqueles “sectores”) – são apenas dois exemplos mas poderíamos dar outros. Não se exige sequer que se mantenham os mecanismos para garantir a representatividade dos seus diferentes orgãos. Não há portanto a preocupação que quando estas falam em nome das cooperativas ou das ONGs (mantendo o exemplo), isto resulte de um mandato que lhes tenha sido dado por aqueles conjuntos de organizações (cooperativas e ONGs).

Nós (cidadãos e organizações), raramente nos damos ao trabalho de exigir que nos espaços da sociedade civil onde se negoceia com outros "sectores" (Estado, doadores, privados), estejam indivíduos que representam realmente as organizações da sociedade civil. Por exemplo, os Conselhos de Auscultação e Consertação Social (comunais, municipais ou provinciais), reservam lugares para representantes da sociedade civil. Quem escolhe esses representantes? Normalmente deveriam ser os que são representados a fazer a escolha. Viria daí a representatividade. Mas, muitas vezes, permitimos que a escolha seja feita sem o nosso envolvimento – por passividade, por medo, por falta de tempo que gera um determinado tipo de passividade. Acontece haver "representantes" que se escolhem a si próprios ou serem escolhidos por aqueles com quem negociarão... Raramente exigimos participar no controlo da escolha dessas pessoas que nos representarão e ainda mais raro é controlarmos as posições que eles defenderão ou que resultou dos espaços onde participaram.

Temos também dificuldade em exercer funções de coordenação (na lógica referida acima de troca de informação e facilitação de tomada de decisões). Raramente cooperamos com a função de coordenação. Por exemplo, estando alguém no papel de circular informação, encaminharmos para ela informação e facilitando assim que esta chegue a um grupo alargado. É comum consideramos que o coordenador deve ser o chefe. E, ou o chefe se impõe e obriga cada um a submeter-se à sua autoridade ou não colaboramos com as funções que permitem coordenar a acção conjunta. O que normalmente resulta em cada um puxar para o seu lado. Neste aspecto temos até dificuldade em discutir de forma frontal, sistmática e produtiva, as nossas ideias. Por exemplo, o secretariado do FONGA achou por bem não estar presente na II Conferência da Sociedade Civil e tem regularmente evitado a discussão sobre coordenação com legitimidade e representatividade. Nós aqui na conferência não estamos seguramente de acordo em tudo. Provavelmente estaremos de acordo em algumas coisas. Ou, alguns grupos podem estar de acordo em algumas coisas e em desacordo noutras. A composição destes grupos em torno de um determinado acordo seguramente que muda consoante o tema. Estar presente em espaços, mesmo discordando de muitos dos presentes, é algo a que temos de nos habituar. Ir à luta para defender a nossa perspectiva - sem considerar que os outros são inimigos (ou possuem uma agenda escondida) - é algo que deveria fazer parte da imagem de marca da sociedade civil. Esta cultura é algo que estamos de construir. Este tipo de debate poderá contribui para uma tal construção.

Desafios profundos
Para além do que dissemos acima é também raro que os representantes prestem contas àqueles que representam. Aqueles de onde lhes vem o mandato. Mesmo nas nossas ONGs, embora seja comum termos assembleias de membros ou de associados, é mais comum que a prestação de contas seja feita aos doadores e à UTCAH (Unidade Técnica de Coordenação das Ajudas Humanitárias). Prestam-se contas a quem se entende como tendo poder... Esta cultura parece ser partilhada tanto pela classe política como pela sociedade civil.

Acontece também que após, elegermos alguém, ao longo do exercício do seu mandato os eleitos evoluam para chefes e deixem de necessitar de renovar os seus mandatos. A sua legitimidade passa a vir do seu estatuto de chefes e da sua afirmação como tal. Quer dizer, levantam voo e deixam-nos em terra. Isto poderá estar ligado a um aspecto da nossa cultura política: a preferência por estruturas hierárquicas e autoritárias em vez de estruturas em rede e horizontais. O líder que tente exercer uma função de partilha, facilitação e mobilização de esforços conjuntos tende a ser aquilo que nós chamamos de “abandalhado”. O líder que não for capaz de dar uns murros na mesa, uns bafos e conquistar o seu poder, é visto como um “boélo” que não devia sequer estar naquela posição. Este tipo de cultura, raramente assumida e várias vezes disfarçada por detrás de um discurso de participação e cidadania cria um desafio real à construção de mecanismos de coordenação legitimados e controlados pelo grupo, na base de mandatos claros e limitados, e na representatividade das estruturas.

Surge a pergunta: será que para sermos eficazes devemos, por enquanto, continuar a permitir estes estilos autoritários e hierarquizados e progressivamente irmos desenvolvendo uma cultura diferente? Será que uma lógica em rede, participativa e igualitária, apenas produzirá uma enorme frustração por não chegarmos a lado nenhum e gastarmos toda a energia a lutarmos individualmente por um espaço de afirmação? Parece um desafio central para a sociedade civil angolana (e para a sociedade angolana, no geral). Colocando de uma forma mais crua o dilema é: vamos praticar mais o que defendemos verbalmente ou vamos ter mais preocupação com a eficácia, arriscando algumas concessões em relação à participação e legitimidade? Continuaremos a permitir que os tais líderes autoritários desempenhem o seu papel? Serão eles necessários para que as coisas aconteçam?

Possíveis pistas para melhor coordenação
Sem estruturas fortes e que possam representar o conjunto de interesses e visões da sociedade, teremos dificuldades em sermos ouvidos e sermos eficazes. Sermos ouvidos, e, também, sermos exigentes com o nosso próprio "sector" (auto-regulação), com o governo e com os doadores. Prestarmos contas, mas sermos também competentes a pedir contas, através de estruturas fortes, representativas e legítimas. Um dos princípios de funcionamento de tais estruturas deve ser a renovação dos mandatos dos líderes. Não deixar que ninguém cristalize na liderança.

Um outro princípio é exigir que estas lideranças prestem contas, regularmente, aos membros das suas organizações e às plataformas de organizações. Isto deve ser-lhes exigido, e quando não devidamente cumprido deve ter-se a coragem de retirar o mandato de uns líderes e atribuí-lo a outros. Praticar este jogo nas nossas organizações da sociedade civil é fundamental para o desenvolvimento de uma cultura política mais democrática e realmente assente na participação e cidadania.

Outro princípio fundamental é o de facilitar o acesso à informação. As pessoas nas várias aldeias, das várias partes do país, devem ter acesso a informação sobre o que está a ser discutido e o que está a ser negociado. Isso é a base para poderem desenvolver uma opinião e exigir das suas estruturas (associativas, políticas, ou outras) que cumpram com mandato que lhes for dado. É pois necessário garantir que a informação circule nos dois sentidos. Para além de serem informadas as pessoas devem ter a possibilidade de ser ouvidas e as suas opiniões devem influenciar os espaços onde as decisões são negociadas e tomadas.

Possíveis critérios para construir estruturas nessa lógica poderiam incluir: (1) o critério geográfico – garantir que as pessoas de todo o território tenham uma chance de participar e (2) o critério temático – garantir que os que trabalhem ou se interessem pelos diferentes temas (criança, HIV-SIDA, segurança alimentar, direitos humanos, etc) tenham a possibilidade de fazer ouvir as suas experiências, soluções e prioridades. Como cruzar estes dois critérios? Como garantir que as nossas plataformas e mecanismos de auscultação e concertação, tenham esta representatividade e abrangência?

Mas, em todas estas estruturas, mecanismos ou processos, estará sempre presente o dilema já referido: que equilíbrio entre a lógica do funcionamento em rede – onde não há hierarquia e onde pode existir um vazio de liderança - e um funcionamento na base de lideranças que empurrem e façam as coisas acontecer? Que equilibrio entre a lógica de rede e a lógica hierárquica?

domingo, 9 de novembro de 2008

O Taxista

No caos que é o trânsito na nossa cidade, temos necessidade de encontrar um culpado. Somos tentados a atribuir papéis, nessa história diariamente sofrida por quem tem que percorrer as artérias entupidas desta nossa urbe. E, se é claro que o bom da fita somos normalmente nós, o papel de vilão é normalmente atribuído ao taxista, vulgo, candongueiro.

Os candongueiros, e as suas máquinas infernais, os azulinhos ‘hiaces’ ou, os menos afortunados, ‘starletes’. Os que aparecem por todos os lados, são os primeiros a formar uma fila a mais onde já não há lugar para mais nenhum carro, e provocam, tão frequentemente, o colapso na circulação, pois seguem religiosamente o moto de que a vida não pode parar, mas esquecem que, muitas das vezes, para que não se pare é preciso andar devagar, e garantir que todos andem. Acabamos por diabolizar esses jovens, que é raro estarem satisfatoriamente encartados, e que têm sobre os seus ombros a responsabilidade de fazer chegar ao seu destino uma percentagem elevadíssima da nossa população trabalhadora, ganhar o máximo para poder retirar o seu e dar o valor fixo ao patrão, e resistir às enormes pressões impostas pela cidade, pelo trânsito que ajudam a complicar, pelos agentes que os ‘penteam’.

Numa urbe sem um sistema de transportes públicos minimamente eficaz, são os ‘azulinhos’ que garantem que a cidade funcione. Eles são o nosso metropolitano, e, na sua aparente indisciplina, é de reconhecer uma assinalável capacidade de cumprir com algumas regras auto-impostas, como é o caso de apresentarem, regra geral, as viaturas limpas e cuidadas, e proporcionarem um tratamento aceitável aos seus clientes. Têm um espírito corporativo já por várias vezes demonstrado nas acções reivindicativas e de solidariedade que desenvolveram. E isso dá-nos a esperança que mesmo os comportamentos negativos que apresentam, como é a flagrante indisciplina no trânsito, possam ser eliminados se houver um maior acompanhamento da classe, um tratamento com mais justiça (e isso significa punir quando assim se justificar, mas não agredir nem explorar sem razão), se algumas regras do jogo forem mais claras, nomeadamente as ligadas ao processo de legalização da sua actividade, e se a polícia desempenhar o seu papel com rigor e de forma isenta.

Habituado a ver-lhe atribuído o retrato do vilão em qualquer conversa em que o taxista tem algum protagonismo, não deixou de ser uma surpresa agradável ver o reconhecimento por parte de várias pessoas, de um papel positivo, e uma postura humana e sensível de taxistas em várias ocasiões. Houve quem contasse o episódio da senhora que, num imprevisto, a família ‘esqueceu’ no Rocha Pinto, e como um taxista a retirou de uma situação que se complicava com a aproximação de um gang de jovens delinquentes, levando-a, sã e salva para junto dos seus. Ou como o taxista na estrada Luanda-Sumbe, decidiu acudir às vítimas de um acidente, que os outros automobilistas ignoravam, pedindo aos passageiros para esperarem enquanto ele fazia mais de 300 km para levar os feridos ao Hospital de Porto Amboim e regressar, para prosseguir viagem para Luanda. Ou como o dono do Discovery que de repente decidiu parar, e que olhava como um boi para um palácio para o motor, de capot aberto, à beira da estrada, no meio do nada, foi surpreendido pelo taxista que parou, e decidiu dar uma ajuda, encontrando uma solução, pois até já tinha sido mecânico na União. Ou sobre o tratamento privilegiado ao senhor engravatado cuja viatura avariou e que precisava de chegar à reunião importante. E daí, em catadupa, surgiram outras histórias e elogios. A predisposição para parar para que os transeuntes, em particular os mais velhos e crianças, atravessem a estrada. A organização em grupos de táxis, que negoceiam os contratos de serviços (muito requisitados, por exemplo, na altura das eleições), e que têm um fundo de ajuda comum, tipo seguro para situações de crise. Enfim, a sua capacidade de inter-ajuda, e de organização.

Os taxistas prestam um serviço público fundamental à cidade de Luanda. Têm que ser vistos como uma parte importante do seu funcionamento e assim serem acompanhados, acarinhados e, naturalmente, disciplinados.

Madrugadores, são trabalhadores claramente motivados e eficazes. É preciso que eles deixem de ser parte do problema e passem a ser, definitivamente, parte da solução.

domingo, 12 de outubro de 2008

Jornalismo, censura, propaganda e o OPSA

“O sopro vital do regime democrático é a Informação”. A afirmação do Jornal de Angola, com a qual estou completamente de acordo, num editorial dedicado ao Observatório Político Social de Angola (OPSA) a propósito de uma reflexão sobre as eleições. Pela leitura do jornal, e infelizmente não me refiro apenas a este editorial, rapidamente se verifica que não temos o mesmo entendimento sobre o que significa esse “sopro vital”. Estará o desacordo ao nível dos conceitos? Mesmo não sendo uma autoridade em comunicação, creio que o tal editorial não dá informação (não publica sequer excertos da reflexão do OPSA) nem se pode dizer que seja verdadeiramente uma peça de opinião. É verdade que tem muitos adjectivos e que fala de neofascismo e da luta contra os sul-africanos, um pouco a despropósito…

A propósito, não resisto a contar aquela anedota do camponês internado num hospital. Na ronda que fez à enfermaria, o médico, apressadamente, diagnosticou o falecimento do homem (que estaria talvez desmaiado e com o pulso muito fraco…). Quando, um pouco mais tarde, a enfermeira ia transportar o senhor para a morgue este, já reanimado, protestou dizendo que estava vivo. A enfermeira retorquiu indignada: Você estudou medicina? Quem é você para questionar o que disse o doutor?

Não sou especialista em comunicação mas sinto-me com direito a ter opinião. Não vejo razão para me calar perante um erro evidente de um doutor, em comunicação ou medicina. E uma das coisas boas que trouxe a internet foi a democratização no acesso ao conhecimento. A propósito, dei uma vista de olhos à Wikipedia, enciclopédia de acesso livre na Internet, fazendo buscas com as palavras-chave relacionadas com o editorial que me inspirou estas linhas: jornalismo, censura, propaganda, neofascismo e monitoria dos media. Nos parágrafos seguintes as partes em itálico são transcrições do que está na Wikipedia.
Jornalismo consiste em lidar com notícias, dados factuais e divulgação de informações. … prática de coletar, redigir, editar e publicar informações sobre eventos actuais.
Censura relaciona-se com controlar e impedir a liberdade de expressão. No sentido moderno, a censura consiste em qualquer tentativa de suprimir informação, opiniões e até formas de expressão... com o propósito de manter o status quo, evitando alterações de pensamento …. A censura procura também evitar que certos conflitos e discussões se estabeleçam. Uma forma moderna de censura prende-se com o acesso aos meios de comunicação e também com as entidades reguladoras (que atribuem alvarás de rádio e televisão), ou com critérios editoriais discricionários (por exemplo um jornal não publicar uma determinada notícia) [sublinhado por mim]. Por detrás da censura pode também estar uma visão que infantiliza o público, considerado como incapaz de pensar por si próprio. O uso quotidiano da censura promove … a auto-censura, onde os produtores culturais e formadores de opinião evitam tratar de questões conflitivas e divergentes.
Propaganda é um modo específico de se apresentar uma informação, com o objectivo de servir uma agenda. … não apresentando um quadro completo e balanceado do objecto em questão. Seu uso primário advém de contexto político, referindo-se geralmente aos esforços patrocinados por governos e partidos políticos.

Vou-vos poupar a transcrever o texto sobre neofascimo e sobre monitoria dos media. Garanto-vos que o documento de reflexão produzido pelo OPSA (que podem ler no Cruzeiro do Sul) nada tem que ver com neofascismo, e que monitoria dos media também não tem relação com censura… refere-se a observar matérias publicadas (enquanto a censura filtra para não se publicar). No entendimento do Jornal de Angola a monitoria promove a autocensura no seio dos jornalistas. Coisa que o JA não tolera...

Não é a Wikipedia ou a internet que cria estes conceitos. E mesmo que fosse, podíamos discutir se correspondem ao nosso entendimento de cada um deles. Até seria possível ir ao site, na internet, e alterar o conteúdo - sinto falta deste nível de abertura na troca de informação e conhecimento, e de debate sem insultos. Estou razoavelmente de acordo com a forma como estão expressos aqueles conceitos (jornalismo, censura, propaganda, etc) na Wikipedia. Por vezes até dá a ideia de que estão a falar de nós... Será que quem escreveu o referido editorial, no JA – editorial que devia ser de leitura obrigatória para os que estão a estudar jornalismo -, tem o mesmo entendimento? E conseguirá agir de acordo com esse entendimento? Tenho curiosidade em saber.

A reclamação, ou crítica, para que o JA ofereça mais jornalismo e, por isso, esteja mais ao abrigo de práticas de censura ou de propaganda, deve unir o público e os profissionais que lá trabalham. Por isso o editorialista do JA não devia ver como inimigos os que reclamam por evolução no nosso jornalismo. Todos teremos muito a ganhar com essa evolução.

sábado, 4 de outubro de 2008

O salvamento

No dia do juízo final não terei muito para apresentar a meu favor, no que toca a ter salvo vidas. Talvez por isso eu tenda a não acreditar que venha a ter de enfrentar realmente um dia do juízo final. Se tiver, paciência, lá estarei para justificar a minha descrença (argumentarei que não se acredita no que se quer, e que por isso não se deve punir a descrença). Vou ter também de justificar ter salvo tão poucas vidas, quando até vivo num país onde, infelizmente, não me devem ter faltado oportunidades para salvar vidas.

Salvei poucas vidas, mas recordo-me de uma salvação que foi dura e onde devido à minha firmeza uma vida foi preservada. Cheguei a casa à noite, depois de um dia de trabalho cansativo, e de um trânsito ainda mais cansativo, e encontrei os meus dois cães extremamente agitados e a morderem um gatinho que estava metido dentro de uma grade por onde a cabeça dele não passava mas com uma boa parte do corpo do lado do fora, puxado pelos cães. Nunca tinha visto os meus cães tão excitados. Pareciam verdadeiras feras, selvagens e perigosas, não fosse o facto de serem caniches… O mais pequeno, a fêmea, mais parecia o resultado do cruzamento de caniche com rato!

Consegui que os meus cães se afastassem do pobre gatinho que se abrigou num local da grade que estava fora do alcance dos cachorros. Abrigar-se, talvez não seja a palavra mais adequada pois, na realidade, ficou encurralado adiando apenas a festa que os meus cachorros queriam insistentemente recomeçar.

Como estava claro que mal eu me afastasse os cães iam voltar a uma atitude pouco civilizada e pouco hospitaleira (eles sentiam-se proprietários da casa, principalmente do quintal), e acabar por matar o gatinho, decidi terminar o salvamento (eu, que estava, mais uma vez, com vontade de deixar a obra a meio).

A muito custo consegui agarrar no animal com cuidado, para não o magoar, não imaginando que ele me ia cravar os dentes afiados no meu dedo indicador. Foi um choque ver a cravarem-me os dentes, exactamente quem eu estava a ajudar por estar preocupado com o seu estado miserável! Este episódio preparou-me para algo que me viria a acontecer mais tarde com o FONGA, mas isso é história para outro dia. Uma história onde, aliás, nem um dedo feri.

Só com a ajuda do guarda é que consegui que o gato descravasse os dentes do meu dedo. Se tivesse puxado o dedo, para o soltar da boca do gato, teria rasgado a pele e a carne onde os dentes estavam profundamente enterrados. Como me mantive focado no meu objectivo quase não reparei os furos por onde sangrei abundantemente, mas não por muito tempo.

Durante alguns minutos tentei acalmar o gato dando-lhe água e leite, para conquistar a sua confiança. Sempre a agarrá-lo pela parte trazeira do pescoço, para ele não voltar a morder-me. Coisa que tentava sempre fazer. Acabei por desistir, abandonando o gato, e a possibilidade de nos entendermos. Juro que nem sequer esperava que ele sentisse gratidão. Deixei-o a salvo dos cães e fui tratar de mim fazendo o curativo ao meu dedo. Reconheci com alguma tristeza que não iamos chegar nunca a uma situação em que tivessemos, eu e o gato, o mesmo entendimento da situação que para mim parecia evidente e sem margem para interpretações. Ele estava numa situação desgraçada e eu não tinha nenhum interesse no caso a não ser vê-lo sair daquela posição. Desisti. E não foi a única vez em que desisti de tentar comunicar por sentir uma barreira na comunicação, mais forte que a minha convicção que valia a pena quebrá-la…

Enfim, dormi com um dedo magoado, dois cães sem entenderem porque lhes interrompi o divertimento – ainda por cima em defesa de um estranho que nem sequer era da casa -, e com a família sem entender porque me fui magoar e arriscar a apanhar raiva ou tétano. Mas dormi com a sensação que tinha aprendido algo, por experiência directa. Não sei se o facto de ter salvo aquela vida, e o conhecimento que ganhei com a experiência, me aproximou ou afastou do céu (o tal do juízo final), mas senti que tinha feito a coisa certa. Dormi com a sensação como se fosse um pequeno herói. Herói incompreendido mas, mesmo isso, soube-me ligeiramente bem…

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O nosso desenvolvimento

Seremos um país atrasado? Com base em que padrões? E se formos? Tiramos algum proveito de falar sobre isso ou é melhor camuflar o nosso estado real com construções vistosas?

Creio que muitos de nós vive na negação, em relação ao nosso real estado de desenvolvimento. Um pouco como o indivíduo que foi pobre e que depois de aumentar os seus rendimentos, esconde por vergonha as suas origens. Eu gosto dos que assumem de onde vieram e que pelo seu trajecto mostram que tudo pode ser transformado.

Atraem-me uma série de questões, que me parecem merecer discussão: (1) O que significa isso de atraso/desenvolvimento? (2) Que critérios são os mais apropriados para "medir" o atraso / desenvolvimento? (3) Quem é que pode, ou deve, medir e avaliar o nosso atraso/desenvolvimento? (4) Em que direcção como país, e cada um de nós como indivíduo, estamos a evoluir?Sejam quais forem as respostas, uma coisa é certa, o estado de desenvolvimento / atraso dos países ou de um indivíduo é algo dinâmico. O estado de desenvolvimento é algo que tem de ser cultivado, como as plantas, sob o risco de se regredir e perder os avanços conseguidos. Progredir e regredir em relação a quê? Eu diria que a possibilidade de escolher é o que melhor integra as várias possibilidades do desenvolvimento. Quem tem mais conhecimento (conhecimento tecnológico mas, também, sabedoria), quem tem mais recursos e riqueza, quem tem mais poder tem normalmente maior poder de escolha. Esta poderia ser uma boa de resposta à questão sobre o que significa desenvolvimento. Assim, quem vive dependente pela pobreza, limitado pela ignorância, ou coagido nos seus movimentos ou na sua liberdade de expressão, vive num estado menos desenvolvido do que aquele que pode optar sobre o que vai consumir, ou fazer, ou sobre o que dizer.

Talvez seja de distinguir entre a capacidade de escolha como grupo e o somatório das capacidades de escolha individuais. Há países que possuem uma considerável capacidade de escolha pelo seu poderio militar, pelo conhecimento tecnológico e pela riqueza que acumularam (por vezes por meios violentos e à custa da liberdade e do desenvolvimento de outros) mas que ao mesmo tempo podem oferecer opções limitadas aos seus indivíduos. Os indivíduos podem, no seio de um país poderoso e rico, viver vidas de opressão e condicionamento, seja pela pressão para consumirem, para pensarem ou para se comportarem de determinada maneira, seja pela limitação violenta dos seus movimentos.

Onde estaremos nós, em Angola, no que toca ao desenvolvimento, se o encararmos da forma como o descrevo acima? Creio que estamos mal. Parece-me que mesmo aqueles que por vezes pensamos serem poderosos vivem sob uma enorme pressão. Pressão e falta de liberdade que obriga a um esforço permanente para projectar permanentemente a imagem de vencedor, de rico e de todo poderoso. Mas esta falta de liberdade que refiro aqui é talvez um luxo para os não sabem como alimentar os filhos, ou são forçados a abandonar as suas casas ou terras sem ter a possibilidade de escolher.

O desenvolvimento a que devemos aspirar deverá libertar os pobres da opressão provocada pela miséria e vulnerabilidade face à violação dos seus direitos, tal como deve libertar os “ricos” que vivem oprimidos por terem de se mascarar no que não são.

Quanto às outras perguntas que ficaram no ar, falaremos na próxima semana.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Felicitar mas alertar

Quem não prefere ser louvado e felicitado em vez de ser alertado ou advertido? Mas quem alerta e adverte poderá estar a prestar um serviço muito mais valioso do que aquele que felicita. Felicitar é algo que qualquer bajulador faz com facilidade, mas há quem seja pago exactamente para produzir alertas e advertências a quem paga.

Ser capaz de olhar objectivamente para quem somos ou para o que fizémos exige maturidade. O imaturo tende a negar o erro, a ser gabarolas, e a estar mais preocupado em salvar a face e em vender uma determinada imagem do que em encarar a realidade. Será que isto se aplica igualmente a indivíduos, organizações e nações?

Não sei. Mas é constrangedor ver “jovens publicações” que necessitam de fazer muito esforço para se superarem, a gabarem-se de serem os maiores do mundo ou que vão dar lições aos outros. Só para não ficarmos completamente no abstracto deixem-me ilustrar o que quero dizer com a afirmação do Jornal de Angola (sim! do Jornal de Angola de 5 de Setembro) de que “... a nossa imprensa está ao melhor nível [da dos países europeus]...”. A mim sempre me pareceu que uma área onde temos de recuperar do atraso que temos é exactamente nos media. É claro que não estou a falar de modernizar equipamentos...

Voltando aos louvores e alertas, sem dúvidas que o MPLA merece ser felicitado pela sua vitória e pela eficácia que demonstrou. Mas, seguindo o raciocíno com que iniciei estas linhas, considero que presto um melhor serviço usando este espaço para alertar, mais do que para louvar. Um parentesis para louvar: a forma sóbria como o MPLA tem festejado a sua vitória, é para mim um motivo de esperança e por isso talvez o que eu escreva abaixo seja um erro de análise da minha parte. Um outro motivo de esperança é a reacção dos maiores partidos e reconhecerem a derrota e em felicitarem o vencedor. Parecem tudo sinais do nosso amadurecimento.

Somos um novo país e, por isso, algumas atitudes imaturas podem ainda ser compreensíveis. Mesmo assim, é bom investirmos na aceleração do nosso amadurecimento. Não o fazermos agora apenas trará custos extra ao nosso já penoso percurso. Poderemos um dia dizer que somos maduros quando:

· Deixarmos de estar obcecados com outras aprovações que não sejam as do eleitorado nacional. Por exemplo, se alguém pede um visto para cobrir as eleições deveremos estar pouco preocupados com as opiniões de quem pede. As opiniões positivas ou negativas em relação ao país não deveriam ter qualquer influência sobre os nossos processos administrativos de atribuição de vistos;

· Conseguirmos, na nossa imprensa pública, convidar comentaristas - para programas da televisão ou para escrever artigos de opinião - que tenham realmente opiniões diferentes uns dos outros e até críticas em relação ao poder. Debates entre alguém que diz “óptimo!” e outro que diz “excelente!”... não parece maduro, nem moderno e não acrescenta grande coisa;

· Conseguirmos organizar as nossas realizações para servir a nossa população (eleitores, passageiros, ou utentes de um serviço qualquer) sem sentir a necessidade de querer dar lições a ninguém nem de mostrar nada a não ser aos tais utentes. Ir aprender antes e evitar erros desnecessários ainda seria melhor. Mas, maduro mesmo seria ser capaz de retirar, nós próprios, algumas lições dos erros que iremos, inevitavelmente, fazer.

O resultado destas eleições preocupa-me pelo risco que coloca em ser entendido como uma mensagem de encorajamento à arrogância – bem ilustrada por atitudes de querermos dar lições ao mundo no momento em que ainda estamos a aprender. Pode ainda ser, erradamente, entendido como um mandato para mandar calar quem não se juntar afinado com o coro que sempre canta louvores. Assusta-me a possibilidade de regressão num país que, como o nosso, já desperdiçou tanto. Para recuperar o tempo perdido necessitamos de modernizar. Talvez até mesmo modernização acelerada. Mas essa deverá estar assente na modernização das relações sociais a par com a modernização tecnológica. Relações feudais com tecnologia de ponta – acessível apenas para alguns – parece-me ter pouco que ver com desenvolvimento. A modernização de que falo assenta na pluralidade, no esbater de desigualdades sociais, na valorização da justiça social, na possibilidade de negociar ideias e interesses, na possibilidade de recorrer a instituições de arbitragem que sejam autónomas. A modernização de que falo tem a ver com sentirmo-nos todos iguais perante a lei.

Como sociedade parece que votamos mais no mono que no pluri (stereo a várias vozes?). O que, num ambiente moderno, seria debatido na media pública e negociado no parlamento poderá passar a sê-lo apenas na sede de um partido ou nos seus congressos. Haverá sempre algumas pessoas com princípios e com ideais a defenderem a decência e o interesse nacional, nesses espaços. Mas, poderemos ficar todos mais vulneráveis. Até muitos dos que estão dentro do partido vencedor. Alguns poderão dizer talvez não tenhamos uma grande mudança, que o parlamento nunca foi realmente uma arena de negociação.

Notei que quando estavam já contados cerca de 78% dos votos, 4% dos votos eram em branco. Pergunto-me como deveremos todos interpretar o sentido de voto desta importante faixa do eleitorado que se deu ao trabalho de ir até à mesa de voto, provavelmente esperar longas horas para no fim colocar um boletim em branco na urna e sair com o dedo sujo. Somando os votos em branco, os votos nulos e os reclamados somei na altura mais de 10% dos votos. Perto do segundo partido mais votado e mais do que o conjunto dos restantes 12 partidos.

Como foi possível termos chegado aqui? A incapacidade (quase demissão) da sociedade civil até de debater a democracia e representatividade no seu seio foi talvez um bom indicador de para onde estávamos a ir. A leveza com que a oposição pressionou por eleições, a contar mais com a fé do que na preparação, a falta de firmeza que tivémos (os partidos políticos e a sociedade no geral) na exigência de algumas pré-condições básicas (como, por exemplo, a garantia de uma imprensa pública independente e com qualidade) são tudo factores que contribuíram para chegarmos aqui. Sem desmérito, claro, para a eficácia do partido vencedor em comunicar, mobilizar, seduzir, etc.

Estaremos perante um recuo do nosso processo político? Ou apenas perante uma escolha, legítima, do eleitorado que irá depois fiscalizar o que se prometeu? Será o espaço para o controlo social preservado, permitindo a tal fiscalização? Teremos quatro anos para ver com o que podemos contar, retirar lições e agir. Talvez três, devido ao ano eleitoral em torno das presidenciais.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Em quem votar?

Como gostaria de ter direito a mais votos! Como gostaria de poder introduzir nuances no meu voto. Mas, na realidade, só tenho um votozinho para dar. É daqueles momentos onde fica clara a importância da organização e da acção colectiva como forma de ultrapassar as limitações que cada um de nós, se contar só consigo, possui.

Em quem votar? É a pergunta que ocupa a cabeça de muitos de nós. Há os “felizardos” que não são afectado por essa dúvida. Há os que já sabiam em quem votar até antes de haver campanha. Até antes de haver eleições marcadas. São os que, como me dizia um velhote há uns bons anos, no Bailundo, “o nosso pai, mesmo quando não tem juízo, é sempre o nosso pai...”. Como não tenho esta visão da política sinto as angústias de ter de fazer uma escolha, consciente do poder limitado que tenho.

Alguns argumentos que para alguns resultam numa escolha rápida e fácil a mim levam-me a pensar. Alguns dos dilemas que me complicam a cabeça:

1. É claro que necessitamos de preservar e valorizar a experiência governativa que, como país, temos vindo a acumular. Será que por isso deveremos votar no partido que está no poder? Não será que isso apenas quer dizer que, seja qual for o partido que ganhar, se deve valorizar a experiência e o mérito? E, por outro lado, com o GURN temos só um partido no poder ou temos vários? Não poderão todos os integrantes no GURN reclamar esse acumular de experiência? Em relação a preservar a experiência só fico com uma certeza: seguramente que não voto em quem pensar mudar pessoas competentes por outras menos competentes, mas da sua “confiança”. Mas, essa escolha de quadros independentemente da sua competência é algo a que estamos habituados. Enfim, estou convencido da necessidade de estabilidade no aparelho do Estado, na manutenção dos competentes e no dispensar dos incompetentes ou corruptos. E isso deve ser feito seja qual for o partido a ganhar.

2. O argumento da obra feita – infra-estruturas - parece-me também muito pouco linear para me ajudar a escolher. Grande parte do que está a ser feito tem base em contratos com empresas estrangeiras e usando o dinheiro da riqueza mineral. Podemos dizer que qualquer um que chegar ao poder pode fazer umas flores. É verdade que os recursos só por si não realizam obra. Vimos isso durante vários anos. É fundamental a criação de ambiente para que o desenvolvimento aconteça, independentemente dos recursos, mas isso pode não ser tudo. É preciso que haja sustentabilidade nesse desenvolvimento.

3. E o argumento da corrupção? Alguns dizem-nos que para combater a corrupção devemos mudar quem está no poder. Também me parece pouco linear. Todos os que estão no GURN? E o uso deste argumento parece esquecer que os corruptos não são atraídos por nenhum partido em particular mas sim pelo poder e pela riqueza em si. Ou seja, não devemos ter ilusões. Quem quer que ganhe as eleições vai atrair para si pessoas que gostam de desfrutar do que o poder tem para dar. Também aqui temos de fazer um esforço conjunto seja qual for o partido que ficar no poder. E devemos todos entender que não é fácil mudar atitudes que se cultivam ao longo de décadas. Serão as espectaculares mudanças de partido por parte de alguns indivíduos, uma confirmação do que digo aqui em relação à atracção que o poder exerce sobre determinado tipo de indivíduos?

Se me perguntarem se só tenho dúvidas, responderei com firmeza que não, que tenho algumas certezas!
Que as mudanças que necessitamos ultrapassam o voto no dia 5 de Setembro. Que vão exigir muito mais persistência e terão que ser mudanças que se infiltrem na cultura de todos os partidos (e outras organizações). Para elas se concretizarem vai ser necessário lutar por elas com o voto, mas também antes do voto, e depois dele:
A necessidade de consolidarmos as instituições que temos, retirando-as do alcance da manipulação estreita, protegendo-as do uso ao serviço de interesses menores. É preciso começar desde já a lutar para corrigir a vergonha nacional que é a nossa imprensa pública, e contribuir para reforçar também uma imprensa privada séria e credível. É fundamental que todos, no poder ou na oposição, ajudem a criar uma imprensa ao serviço do País.
Reforçar a lealdade ao país antes da lealdade aos partidos mas, simultaneamente, reforçar os partidos como organizações que defendem um determinado modelo de sociedade. Enfraquecer a lealdade partidária que não estiver assente em ideias (que deverão ser traduzidas na prática, mais do que nos documentos).

Cada um de nós, armado apenas com um voto, está limitado na capacidade de concretizar o que refiro acima. Por isso, embora devamos todos votar, devemos também dedicar tempo e recursos para a acção com outros companheiros com quem partilhemos algumas das dúvidas, e das certezas, acima. Esta opção da acção cidadã, onde os direitos políticos se exercem para lá da colocação do voto na urna, é um caminho lento para produzir resultados, mas não vejo outro. Os atalhos podem ser viáveis para produzir infra-estruturas, não para criar relações sociais qualitativamente diferentes.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Livres e justas?

Aprecio eleições livres e justas como também aprecio ler artigos e análises sobre o nosso processo, e que sejam igualmente justas. Muitos irão escolher com base na realidade que é revelada (ou criada) pela media. Também fora do país muitas opiniões se vão formar com base na realidade comunicada (inventada, ou exagerada…) pela media. Por isso – mas não apenas por isso - devemos preocupar-nos com a justiça do que é escrito.

Leio regularmente o Jornal de Angola – mas vou falar apenas do número de 12 de Agosto, para simplificar - e li recentemente duas análises escritas sobre Angola e o seu processo eleitoral: um comunicado da Human Rights Watch de 13 de Agosto e um artigo de Lara Pawsan no Mail & Guardian de 15 de Agosto. Estas leituras levaram-me a pensar que falando em “livres e justas”, e aplicando esta combinação ao que fui lendo, me veio à mente que todos eles podem estar a expressar livremente as suas ideias mas que o fazem com um enorme deficit de justiça... São talvez livres mas não justos, portanto... Em todos eles falta o reconhecimento das complexidades, das nuances e das contradições que vivemos e que a realidade verdadeira sempre tem. É fácil de ver que os dois artigos estão de um lado e o Jornal de Angola de outro. Parece até que vivem em mundos simétricos e paralelos embora opostos. Mas, por outro lado parecem estar do mesmo lado em termos de análise simplória e parcial.

Aconselho-os a lerem criticamente estes textos e buscarem estas duas parcialidades de sinal contrário. Quanto ao Jornal de Angola podem escolher um número qualquer embora eu tenha escolhido como exemplo de parcialidade algo que me pareceu cómico. Todas estas três perspectivas “vendem” uma realidade simplista de Angola, igualmente parcial e distorcida. Por vezes dá até a sensação de estarem a abusar da nossa inteligência. Passo a partilhar com vocês apenas algumas passagens dos referidos documentos, por me parecerem ilustrar bem aquilo de que estou a falar. Se lerem os textos pode ser que encontrem até exemplos melhores do que estes meus, mas esta foi a minha escolha. Na realidade é o conjunto, de cada um dos documentos que dá esta ideia de nos estarem a querer endoutrinar. Passemos aos exemplos:

Segundo o HRW as eleições vão decorrer em 1 dia, contra a vontade do MPLA e a passividade do CNE, que pretendiam que fosse em 2 dias. Segundo ainda a HRW a decisão da votação ser em 1 dia foi devida à pressão dos partidos da oposição e da AJPD. Parece implícita a ideia que as instituições que tomaram a decisão – e onde o MPLA tem a maioria - não tiveram qualquer mérito na decisão e foram forçadas a tomá-la. É caso para perguntar: afinal a sociedade civil e os partidos da oposição são bastante poderosos para forçar o partido maioritário a tomar decisões contra a sua vontade? ou vivemos, como parece sugerir o resto do texto, num ambiente de ditadura difarçada onde o maioritário faz o que bem entende?

Lara Pawson sugere que uma das razões pelas quais Mfulupinga Landu Victor foi assassinado terá sido o ser bakongo... Já Miala, segundo ela, foi preso não se sabe porquê – e realça que é também bakongo. Estas referências às origens étnicas são realmente disparatadas e despropositadas mas coerentes com uma visão folclórica do que se passa em Angola. Imagino que Lara Pawson nem sequer saiba que Miala era o chefe nacional da segurança de estado quando Mfulupinga foi assassinado. Não que eu esteja a sugerir que exista uma relação. A forma como faz referência, em vários locais, a assassinatos – que infelizmente ocorreram realmente – parece-me a pior maneira possível e parece querer dar a ideia que aquilo não é coisa do passado. Não será isso uma distorção grosseira? Não criará isso uma imagem que representa melhor a Angola de fins de 1992 do que a Angola de hoje?

Jornal de Angola, dia 12 de Agosto – uma entrevista com Dino Matross onde se selecciona para título “O MPLA é um motivo de orgulho para os Angolanos” e uma entrevista com Camalata Numa onde se selecciona para o título “A nossa estratégia serão acções enganadoras de pequena intensidade”. Juro-vos que não estou a brincar! A falta de subtileza do editor que escolhe os títulos desta forma chega a ser cómica.

Poderá dizer-se que estes exemplos não são comparáveis. Talvez não sejam. A única coisa que quero comparar é a semelhança na atitude parcial, a mesma falta de subtileza e de reconhecimento da complexidade do que estamos a viver. O esforço, visível, para nos impingirem um quadro simplificado com bons de um lado e maus do outro, parece-me pouco eficaz. Provavelmente servirá apenas para reforçar as convicções dos que já estão convertidos e para aprofundar a desconfiança em relação àquelas fontes e às suas motivações, por parte dos que querem ser informados com verdade. Faz-me lembrar o José Mário Branco quando disse “não me emprenhem mais pelos ouvidos!”

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A Alma e a Cidade - In Memoriam

As cidades não são só pedra. Só ruas. As cidades não podem sequer ser só as suas gentes. As cidades são entes vivos, que nascem, crescem, desenvolvem-se e, eventualmente, morrem. As cidades são também a sua história, e é importante preservar os marcos que nos ajudam a recordá-la, e que as tornam únicas.

Não parece que haja uma grande preocupação em preservar a alma da nossa cidade. A abrupta aparição de edifícios altos, de uma forma mais ou menos indiscriminada no casco urbano antigo da capital, não parece ter sido uma boa ideia. Não apenas porque a estamos a inviabilizar devido ao caos que essa concentração está a provocar, mas também porque a estamos a descaracterizar completamente. Vamos, a continuar por este caminho, transformar-nos em mais um cidade de prédios altos, uma urbe como tantas outras, de edifícios incaracterísticos, uma boa parte deles dependentes massivamente da climatização, monumentos ao mau gosto e inimigos do ambiente.

Mas hoje tenho que dedicar as linhas mais significativas deste texto ao mercado do Kinaxixi. Eu sei de que não estamos a falar do Kinaxixi que tão bem retrata o Arnaldo Santos, apesar da lagoa continuar teimosamente lá, ameaçando o prédio sujo, e alguma sereia decerto ali se esconder, pois, volta e meia, uma vida é reclamada pelas suas águas verdes. Era um edifício mais recente, mas um dos que mais caracterizava a nossa cidade, e talvez o mais significativo dos que assinou o Arquiteto Vieira da Costa, discípulo de Le Corbusier, e por muitos considerado o arquiteto mais proeminente em Angola.

O Kinaxixi, com as suas linhas limpas, e a sua estrutura funcional, foi perdendo a sua importância como mercado, com o crescimento do mercado informal, as complicações do trânsito, e a dificuldade de estacionamento no centro da cidade. O grave foi não ter havido quem pensasse num aproveitamento, quiçá mais nobre, de um edifício tão importante para a cidade. A estratégia foi aliás, a oposta. Abandonado, após as primeiras reacções negativas da sociedade à sua transformação, que levou a Assembleia Nacional a discutir o assunto, foi-se transformando numa cloaca, que todos desejavam ver eliminada. E assim, seguindo o processo do Palácio de Dona Ana Joaquina, aconteceu.

Luanda tem história. È uma das cidades mais antigas da costa ocidental da África sub-sahariana. E essa história poderia torná-la única. Mas estamos a apagá-la com uma rapidez tal que, não tarda, para dela irmos buscar alguma referência, teremos que Luandar no livro que o Pepetela assinou alguns anos atrás.

O exemplo do Palácio de Ferro deve ser seguido, procurando-se instituições que invistam em edifícios que dignificam a nossa cidade e que clamam por reabilitação à altura O Grande Hotel de Luanda, ali nos Coqueiros, o Dantas & Valadas, junto à Lello, o antigo Baleizão, a Biker, ou o que resta da Rua dos Mercadores, entre outros, deveriam merecer imediata atenção.

Nas cidades, a história é escrita com pedra. Preservemo-la.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Ainda o “Xé menino não fala política”?

Deveremos, na sociedade civil, falar de política? Ou será melhor ficarmos calados por isso ser tema reservado aos partidos políticos?

Será que mesmo neste período de campanha eleitoral ainda é de defender o “xé menino não fala política” para quem não seja político profissional? Tudo indica que está já ultrapassada nos meios oficiais a ideia - amplamente divulgada em Julho de 2007 e que ouvimos da boca de políticos, jornalistas e funcionários do estado - de que várias organizações estavam a envolver-se em domínios que são monopólio dos partidos políticos. Espero bem que essa ideia esteja realmente ultrapassada e que não estejamos apenas a viver uma pausa devida às eleições.

Sempre pensei que o único monopólio dos partidos políticos era o de concorrer às eleições, embora entre nós seja possível um partido político legal estar impedido de concorrer às eleições. É bizarro mas é provavelmente melhor do que ter centenas de “partidos” que apenas servem para consumir subsídios sem representarem para os eleitores reais opções de escolha. Esperemos que estes que ficaram de fora da corrida ao poder não se desinteressem do debate político, mesmo que não tenham a possibilidade de ser eleitos. É exactamente o interesse no debate político – e o direito a participar nele – que não deve ser negado a ninguém.

Infelizmente ainda vemos pessoas a advogar que as organizações da sociedade civil devem adiar as suas realizações e absterem-se de tomar posições públicas, por estarmos em período de campanha eleitoral. Preocupa-me esta linha, particularmente quando vem de pessoas activas em organizações da sociedade civil. Não será que deveremos defender o contrário? Não será que deveria ser agora o preciso momento de todos os cidadãos serem activos e discutirem e envolverem-se com os partidos no sentido de se conseguirem compromissos relativamente às políticas futuras? Estou essencialmente a pensar nas políticas que poderão ajudar a libertar Angola da pobreza e da exclusão social e dos outros os males que daí resultam. É evidente que este engajamento de que falo exige mais do cidadão do que apenas correr com bandeiras, vestir uma t-shirt, colocar um boné, buzinar o carro ou a moto (para os que tiverem) ou responder em coro com a multidão quando alguém, a partir do palanque e do microfone, nos faz uma pergunta. Atenção que não tenho nada contra esta dimensão carnavalesca da política, entendo até que ela dá energia e cria coesão indispensável para outras coisas. Mas não será o momento das organizações da sociedade civil promoverem também o tipo de envolvimento onde o cidadão se engaja no processo com a sua voz, transmitindo as suas ideias e experiência?

Se não conseguirmos fazer isso agora seguramente que ainda nos será mais difícil, no pós eleições, mantermos sob observação os que forem eleitos e desenvolvermos a capacidade de lhes recordar regularmente o muito que nos prometerão agora.

No dia 7 e 8 deste mês, na Universidade Católica, o auditório esteve quase sempre cheio de pessoas que debateram exactamente esta relação entre a sociedade civil e a política. Foi um debate interessante e rico pela diversidade de perspectivas e pela qualidade das abordagens. A transmissão em directo, pela Rádio Ecclesia, e pela internet, contribuiu também para alargar a audência aos que não estavam na sala e permitiu que mesmo pessoas que estão fora do país acompanhassem os trabalhos. Foi também lançado um livro sobre o mesmo tema, livro que contou com a contribuição de várias dezenas de autores, de diferentes nacionalidades. O livro e os debates parecem-me extremamente oportunos por estarmos num momento privilegiado para discutir ideias. Por isso, quando vos vierem com o “xé menino não fala política...” respondam com convicção que isso já é falar de política! Política de omissão e de passividade. Neste momento desde o Presidente da República aos partidos da oposição, estamos todos a falar de cidadania. Vamos então exercê-la.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A FINA POEIRA DOS %

A poeira infiltra-se nos interstícios mais pequenos, e se não é limpa de imediato, altera a cor, e passa a fazer parte do objecto. Passamos a achá-lo normal com aquela cor. A dureza da vida de quem limpa, é a sensação de inutilidade, a permanente necessidade de limpar uma e outra vez. Sempre me afectou essa sensação de impotência perante o efeito corruptor do tempo, e a necessidade de permanente conservação. Como se não houvesse força suficiente para manter as coisas num estado impecável. Como se estivéssemos dependentes da descoberta da fórmula do moto contínuo para podermos manter todo o mecanismo a funcionar de forma inalterável ad eternum.

Quando olhamos para trás, choca-nos a degradação dos sistemas que se foram construindo. Imaginamos os gritos de júbilo e de dor num Coliseum replandescente, e que hoje não é mais do que uma caricatura do que foi. Até as pedras se degradam… Procuramos imaginar Hamurabi formulando o seu código, e pensando-o eterno, ou o Reino do Congo, com a sua organização que parecia tão sólida, e chocamo-nos com a volatilidade das coisas e dos sistemas. Das sete maravilhas da antiguidade, que tanto surpreenderam Heródoto, só as pirâmides resistem. Carcomidas e enigmáticas, completamente desajustadas no tempo, um símbolo do escárnio aos sonhos de eternidade do homem.

Mas desde cedo os grupos de pessoas que procuravam sobreviver juntos, perceberam que era preciso regras. Não podia ser apenas a lei do mais forte a determinar o que estava certo ou errado. Hamurabi, Moisés, Sidharta Gautama, as mentes brilhantes da Grécia antiga, Maomé, Rousseau, Jefferson, entre muitos outros, foram apresentando-as como a palavra de Deus, ou dos homens, para que fossem por todos seguidas, e se estabelecesse um código de conduta que permitisse alguma justiça, e se diminuísse a tensão entre os componentes de uma mesma sociedade.

É verdade que na maioria dos casos os códigos, datados como todas as realizações humanas, por conveniência ou miopia, acabaram por estabelecer injustiças. Mesmo quando as melhores intenções presidiram à sua formulação, as barreiras conjunturais, ou a simples necessidade de manter o status quo fez com que se procurasse eternizar situações que convinham ao poder, existente ou que se pretendia implantar. A escravatura, a distinção de classes e castas, a desigualdade com base no género, foram em muitos casos legislados, e fizeram com que gerações de pessoas fossem vilipendiadas com base na dita palavra divina, ou na das tábuas dos homens que se julgavam clarividentes.

A dificuldade de alterar os códigos, adaptando-os à ética de cada momento, sem os distorcer para benefício próprio, é um problema real. Mas o importante é vislumbrar na ética, o que é imutável. Os princípios que o tempo sublimou: a igualdade entre os Homens perante a Lei, a honestidade, o respeito pelo outro. Não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam a nós próprios.

Neste momento de mudança, não deixemos que práticas que se vêm tornando comuns se inscrevam no código de conduta da nossa sociedade como um comportamento normal.

Não deixemos que a fina poeira dos %, se estabeleça como uma regra, a que é normal o servidor público aderir.

Valorizemos o que é simples e fundamental. A honestidade, por exemplo.

domingo, 10 de agosto de 2008

Pode alguém da segurança fazer-nos sentir inseguros?

Pode parecer um contrasenso que alguém se sinta inseguro devido à acção de forças de segurança… outro contrasenso seria alguém dos serviços de informação a agir de forma desinformada (em relação à lei, por exemplo).

Agora que estamos em período de campanha eleitoral é fundamental que todos nos sintamos seguros para defender as ideias que considerarmos correctas, que questionemos o que acharmos errado, e no fim que escolhamos sem medo o que considerarmos melhor para o país. Devemos fazer tudo isto em segurança e comportar-mo-nos de forma a transmitir também segurança aos que nos rodeiam sejam eles de que partido for. Segurança para os que pensamos que vão votar conosco, e segurança também para os que pensamos terem opções distintas das nossas. Embora todos tenhamos a obrigação de fazer isso há quem seja pago especificamente para garantir que todos nos sintamos seguros a fazer o que a lei permite. Segurança, em particular, para os que são activistas políticos. Em princípio são os que estão a criar as condições para que cada um de nós faça uma escolha informada.

Todos devemos entender que o trabalho dos que, por profissão, estão neste domínio da segurança e dos serviços de informação - também fundamentais para todos nós - é um trabalho difícil. Por isso todos devemos respeitá-lo e protegê-lo das tentações, compreensíveis, de instrumentalização partidária.

A utilização das instituições de segurança como instrumento para fragilizar os opositores políticos, desvirtua o seu papel de garante da protecção dos interesses nacionais contra interesses alheios ao país e é algo profundamente negativo. É compreensível que o período em que a luta política era feita de armas na mão facilitou a criação de alguma confusão. Os que contribuiram para o prolongar da guerra devem entender que em vários aspectos ainda estamos a pagar a factura de terríveis erros de cálculo feitos em 92, ou até antes. Mas todos temos de fazer um esforço para ir corrigindo o legado desses terríveis erros. Nesse sentido, garantir que as forças de segurança ajam dentro do estrito cumprimento da lei é algo fundamental.

O diálogo que transcrevo abaixo e a que tive acesso a partir de uma gravação, é um interessante diálogo telefónico entre Filomeno Vieira Lopes (FVL), presidente do FpD, e o Comandante Municipal da Polícia da Gabela (CMPG) , a propósito da detenção de um activista daquele partido no mês de Julho.

FVL - Senhor comandante recebemos a notícia muito preocupante de que há dois dias o nosso membro da comissão política, …/… e primeiro secretário provincial foi preso e esteve a ser interrogado por cerca de duas horas e ficaram apreendidos os documentos que ele levava que eram para apresentar ao tribunal.

CMPG - Ele agiu de má fé. Não se apresentou ao governo e não se apresentou às autoridades policiais. …/.... O senhor presidente [do FpD] sabe que nós a polícia trabalhamos com os orgão de informação, SINFO, serviço de sectores da polícia, agentes que trabalham à paisana. Ele passa nuns três bairros e no terceiro bairro então a nossa fonte veio-nos informar que há um cidadão que está a fazer um trabalho de subscrição de candidaturas para o tribunal, mas que ele não se apresentou. Então enviámos um pessoal para ele se apresentar na unidade policial…/… pedimos a credencial, ele tem credencial. …/…
Ligámos à província e orientou através do SINFO, ele tem de parar ainda de fazer o trabalho porque as palavras enganadoras com que está a enganar a população é um problema de insegurança. Mas ele não ficou preso, só no gabinete…


Será o desconhecimento da lei por parte das autoridades envolvidas neste episódio e o interrogatório policial de activistas políticos algo de excepcional e raro? Não vejo valor em especular sobre isso. O que me parece claro é que todos devemos exigir um pronunciamento claro das lideranças políticas em relação a este tipo de ocorrência. A exigência para que se cumpra a lei deve ser feita por todos nós, independentemente do partido em quem votarmos. Ela deve também ser feita por aqueles cuja profissão está relacionada com os serviços de segurança e serviços de informação. Estas pessoas, que merecem todo o nosso respeito, estão ao serviço do país para nos proteger a todos.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O rio da Minha Aldeia

Entre os poemas de que mais gosto de Fernando Pessoa, está aquele em que ele descreve o rio da sua aldeia. É no Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro. Ele retrata a importância do rio da aldeia de cada um de nós, em particular daqueles que não têm um Kwanza, ou Longa ou Catumbela, a passar pelo meio da sua terra. Ele refere como se deve estar, e viver cada coisa, assim, de forma integral, sem distrações, num desenvolver da capacidade de nos apropriarmos das suas qualidades, simplesmente pelo que essa coisa é, não recorrendo a elucubrações sobre o que foi, o que poderá ser, ou a importância que outros lhe poderão dar. Viver o momento, e amar porque está ali.

Também eu tenho um rio na minha aldeia. E na oportunidade criada pela facilidade da viagem, fui mostrá-lo aos meus. O Caua ali estava, simples e modesto, numa paisagem que se tinha transformado desde os tempos de minha meninice. Não creio que ainda tenha muitos dos pequenos peixes que procurávamos avidamente com os cestos de vime, saindo mesmo, de vez em quando, um pequeno bagre como prémio. Hoje ele corre entre um aglomerado cada vez maior de casas, e deverá estar a sentir-se algo asfixiado. Mas ali estava, para gáudio meu, e decepção dos meus, que esperam sempre, como sinónimo da palavra ‘rio’, um equivalente ao Zaire, ou Zambeze. E foi mesmo alvo de chacota quando, na travessia da estrada da Base, ele se escondeu dos olhares curiosos, num mar de verde que o protegia.

Os rios, são caminhos que podem juntar as pessoas. Num abraço permanente e fiel, procuram unir regiões extensas, sem se preocupar com as misérias que o homem cria. O rio pode ser fronteira, obstáculo, barreira à compreensão entre os que habitam as suas margens. Daí a importância das pontes. A necessidade dos traços que os atravessam, e nos permitem continuar a jornada, de forma fácil, num eterno percorrer que nos leve a criar os laços que possam fazer de nós um povo único e uma grande nação. As pontes são monumentos à união. E é belo quando ao simbólico se junta a beleza da realização humana, como no Kwanza, no Longa, no Bengo, ou agora na nova ponte sobre o Catumbela.

No deambular pelo país, não escondo o meu fascínio pelos rios. Os sinais de esperança que nos enviam na aproximação, as pontes que nos permitem perscrutá-los durante a travessia, a saudade que deixam quando nos afastamos. Numa viagem pela marginal, é o Kwanza, o Longa, o Keve, o Catumbela, que marcam a paisagem. Se formos pelo centro, o Lucala, exuberante, o Nhia, lembram-nos da sua importância, antes de se juntarem aos seus receptores. E até nos desvios que nos levam à descoberta de novas e deslumbrantes paisagens, como na serpenteante jornada que vai da Munenga a Calulo, encontramos a poesia dos nomes, em recém colocadas informações sobre a hidrografia local. E assim vamos cruzando com o N’Dongo, o Okoge, o Lucamba, o Hire, orgulhosa e poeticamente inscritos em enormes letreiros que os anunciam na berma da estrada, antes de cada um dos pontecos que que se confundem com a estrada. Na beleza da paisagem, a curiosidade desponta. Mas na maioria dos casos, passa-se o mesmo que com o rio da minha aldeia.

Os rios, os verdadeiramente importantes, existem dentro de nós.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Decidir em quem votar estudando as listas?

Na última crónica sugeri que os eleitores tentem saber quem são os integrantes das várias listas – e a forma como essas listas foram decididas - para terem mais um elemento de decisão sobre em quem votar.

Um amigo reagiu chamando-me a atenção para o facto de não ser tão linear essa forma de preparar as nossas escolhas. Já agora, e abrindo um parêntisis para ser eu a chamar a atenção aos meus amigos do Cruzeiro do Sul… a manchete da última capa não reflectia o espírito do que foi dito por Isaac dos Anjos na entrevista. E mesmo que ele tivesse dado um tom ameaçador às suas palavras seria o tipo de afirmação a não amplificar. Parece-me o caso onde o bom senso do jornalista deve entrar em acção. Ao amplificar tal mensagem seria obrigação do jornalista adoptar uma atitude pedagógica e/ou desafiar o entrevistado explorando se ele teria consciência da enormidade do disparate dum político levantar fantasmas ameaçadores na fase em que estamos.

Mas voltemos à questão da opção de voto com base nas listas. Segundo o meu amigo, estamos habituados a escolher partidos sem obrigatoriamente pensarmos em quem está à frente (ou por detrás…) do partido que escolhemos. Entre nós ser convidado por um partido para integrar a sua lista é como que um favor e uma promessa de futuros benefícios… por isso, nós escolhemos o partido e a este caberá o papel de distribuir favores aos que considerar “merecedores”. Exagerando um pouco cai-se na lógica onde o deputado vale apenas pelo braço que deve levantar quando chegar a altura de aprovar propostas que não ajudou a desenvolver. Se esta for uma das muitas regras (não escritas) do jogo político entre nós, então é algo que temos de lutar por alterar. Temos de conhecer quem nos representa e, se for caso disso, força-los a representarem-nos realmente. Para isso temos de saber quem eles são e qual foi a sua trajectória para chegar a esta posição de candidato a nossos representantes.

Mas aqui – alertou também o meu amigo - colocam-se várias dificuldades: quanto tempo nos levará a escrutinar com o minímo de cuidado as centenas de candidatos? que critérios utilizar para avaliar a qualidade destes candidatos?

Começando pela última questão, como utilizar a experiência como critério? Experiência de quê? De ter feito carreira dentro dos respectivos partidos? Talvez sim dependendo de como essa carreira foi feita mas, muitas pessoas com quem tenho conversado sobre estes assuntos expressam que gostariam de ver renovação no meio dos políticos profissionais. Uma renovação por gente mais comprometida com ideias, com princípios e com linhas políticas. Mas, saber quem defende o quê, para além das palavras, não é coisa fácil. Por isso seria interessante conhecer as carreiras políticas ou cívicas de quem se nos apresenta como candidato a nosso representante. Infelizmente o nosso processo político, sem envolver armas, é ainda jovem o que nos retira a possibilidade de observar como os nossos candidatos se foram comportando ao longo do tempo. Méritos nos desportos podem ser interessantes para mobilizar gente mas no parlamento será necessário mais do que isso. Procurar os méritos num determinado domínio profissional também me parece um mau critério. Os profissionais devem aconselhar e podem sempre ser contratados para dar opinião como especialistas. A maior parte das grandes opções politicas raramente podem ser tomadas numa base técnica. Ou seja, é possível encontrar técnicos do mesmo ramo a defenderem políticas opostas. Uma pesquisa feita recentemente pela BBC em Angola no início deste ano mostra que o factor mais importante na base da escolha foi o partido “ter um bom líder”. Na mesma pesquisa detectou-se que muitos consideram que para governar bem o país necessitamos de líderes fortes e de especialistas. Interessante a combinação… no fundo parece demonstrar que entre nós se admira mais as decisões, e portanto a política, na base da autoridade mais do que na base da negociação de interesses e perspectivas alternativas.
Quanto ao problema de dar muito trabalho a escrutinar tantos candidatos… é verdade mas o que está em jogo para todos nós é mais do que a decisão que resolvemos atirando uma moeda ao ar. Uma forma de limitar a nossa pesquisa poderia ser olhar para os primeiros quarenta de cada lista. Mas garanto-vos que pode ser muito interessante olhar para quem foi colocado no fim da lista? Será que devemos começar por aí?

sábado, 26 de julho de 2008

Diz-me quem está na tua lista…

Diz-me quem está na tua lista e eu te direi quem és… seria, neste nosso tempo de eleições, uma boa adaptação do velho ditado. Uma variante, também apropriada, poderia ser: diz-me como fizeste a lista e eu te direi quem és…

A forma como os diferentes partidos criaram as suas listas e as pessoas que nela incluiram pode dar-nos uma boa imagem do que pretendem fazer com o país. Dá-nos também uma boa ideia de como encaram o exercício da política. Se mais numa perspectiva Mugabista ou se numa perspectiva Mandeliana. Perdoem-me as referências extremas. Mais do que os programas e manifestos, as pessoas que nos estão a ser propostas são os reais indicadores do que na prática nos estão a oferecer. Em princípio estão a propor-nos as pessoas que irão conceber, discutir e aprovar as leis que nos irão reger. Em princípio serão as pessoas que, pelos orçamentos que aprovarem, vão definir se a prioridade vai para combater a pobreza ou se para podermos exibir o maior estádio, o maior arranha-céus, etc de África ou do mundo. E digo “em princípio” porque também se pode dar o caso de se esperar daquelas pessoas que apenas utilizem os braços – levantando-os quando receberem instruções para votar nisto ou naquilo.

Esperamos de um(a) deputado(a) que esteja informado(a) e interessado(a) nas questões nacionais e com o interesse do eleitorado. Por isso é útil e legítimo que olhemos cuidadosamente para as listas e tendo avaliando a capacidade dos actuais candidatos para defender o interesse comum.

Algumas pistas que eu recomendaria para essa análise, seriam:
§ Pesquisar o percurso dos candidatos que nos estão a ser sugeridos. Em que medida possuem experiência e deram provas na actividade cívica ou política. Não que só devamos apostar nas velhas guardas dos diferentes partidos mas é provavelmente arriscado estarmos a usar o parlamento como local de estágio para quem quer iniciar a sua carreira política.
§ Procurar a informação fora do circuito que gerou e propos a lista. Dessa fonte corremos o risco de que nos apresentem apenas um dos lados do candidato(a). Ou, na pior das hipóteses que até criem um lado que ele não possui de todo. É verdade que por vezes perguntamos ao vendedor informação sobre as qualidades e defeitos do produto que ele nos vende mas essa não será a estratégia mais segura para obter informação.
§ Procurar se as pessoas surgiram na lista por mérito próprio, conquistado por quem são e o que fizeram, ou se a sua inclusão parece ser uma extensão da herança familiar.

Permitam-me aqui um parentesis. Recordam-se do assassinato de Benazir Butho e da escolha do filho e do marido (provisoriamente até o miúdo criar barba…) como sucessores naturais? Imagino que como eu tenham ficado espantados ao descobrir que os modernizadores do Paquistão afinal seguiam uma lógica medieval na escolha da liderança dentro do seu partido. Este episódio preparou-nos para algumas das nossas listas de candidatos. Mas eu continuo sempre a ficar espantado com o contraste entre o modernismo dos edifícios e de alguma parte do discurso, e o anacronismo dos processos políticos (em particular a escolha das lideranças). Alguns mecanismos de sucessão na política e nos negócios parecem-me mais adaptados à época feudal.

Olhemos pois para as várias listas que devem ter ficado concluídas ontem e questionemos em que medida foram elaboradas a pensar no país. Esta pode um dos elementos chave para nos prepararmos para escolher.

Amplificar e amortecer

Não tenho dúvidas sobre a utilidade tanto dos amplificadores como dos amortecedores. Quando uma voz é fraca, ou se quer que ela chegue a mais gente, é útil utilisar amplificadores de som. Por outro lado, quando os trabalhadores dos aeroportos ou de outros locais ruidosos são forçados a conviver com o ruído, é útil usar uns tampões nos ouvidos para o amortecer. São provavelmente mais raros os mecanismos que para uns casos funcionam como amplificador e noutros como amortecedor. Mais raros talvez porque exigem intencionalidade e capacidade de filtrar.

Vem isto a propósito do Jornal de Angola (JA), e do serviço que presta como meio para fazer chegar aos seus leitores informação sobre as diferentes realizações e posições dos, também diferentes, partidos políticos. Um público informado é um público com melhor capacidade para fazer escolhas. E na raiz dum verdadeiro jogo democrático está a possibilidade de fazer escolhas informadas. De um estudo simples sobre as capas e contracapas do Jornal de Angola no período de 1 de Abril a 30 de Junho deste ano verifiquei o que parece ser uma tendência para amplificar e amortecer de forma selectiva (voltarei noutro momento com dados mais completos para o resto do ano e para outros jornais) Em Abril, Maio e Junho, nos 91 números do JA, o MPLA surje 22 vezes nos títulos da capa e contracapa.. No mesmo perído os outros partidos que surgem também na capa são a UNITA, que surje em três títulos e a FNLA que surje em 1. Se considerarmos o nível de realce dos títulos verificamos que o padrão é ainda mais enviezado. Normalmente é fácil identificar quatro níveis de realce nos títulos. Só o MPLA aparece nos títulos principais e secundário. A UNITA e FNLA aparecem no nível quatro da capa ou até ao nível dois da contra-capa. Estará o Jornal de Angola a funcionar como mecanismo que de forma diferencial amplifica o que é dito e feito por uns e amortece o que vem de outros? Ou será que o panorama apresentado acima é apenas o resultado de um trabalho jornalístico que se limita a noticiar o que acontece? É evidente que não lhes compete inventar e dar visibilidade aos outros partidos se eles não fizerem ou disserem algo… será esse o caso?

Sou um ouvinte assíduo da Luanda Antena Comercial e não vejo este papel activo de amplificação de uns e amortecimento de outros. Sendo uma rádio privada até poderia entender se os proprietários lhe dessem um certo enviezamento, distorcendo as coisas a favor das suas preferências e interesses. Não é boa prática jornalistica mas, como trataremos noutra altura, parece ser prática corrente. Mas é menos compreensível que num jornal público surja este padrão de cobertura. Irei aprofundar esta pesquisa mas creio que poderemos desde já levantar algumas questões. No caso de existir realmente uma tendência deliberada para fazer mau jornalismo é caso para nos questionarmos sobre a raiz do problema. Orientações recebidas? Porque será que as mesmas orientações não terão o mesmo seguimento na LAC? Se existem essas orientações, o que as motivará? Falta de confiança nos argumentos positivos para que os eleitores façam uma escolha informada? Pode ser que não existam orientações explícitas (embora o caso com o Ernesto Bartolomeu, na Televisão que também é pública, pareça indicar o contrário). Poderemos estar também perante “jornalistas” demasiado zelosos e que acreditam que uma forma de consolidarem a sua posição “profissional”, ou até de serem promovidos, é mostrarem a sua fidelidade a quem está no poder.

Isto merece ser investigado e merece posicionamentos claros por parte dos que estão no poder – em particular os responsáveis pela área da informação - e dos que são candidatos ao poder. O mesmo olhar sistemático e crítico sobre outros órgãos de informação é igualmente essencial. Em que medida os outros orgãos sofrem de doença semelhante (mas ao serviço de outros é claro)?

Uma coisa parece clara: quem quer que promova a informação através de mecanismos filtrados e associados a amplificadores ou amortecedores, está a prestar um péssimo serviço público. Muito provavelmente está até a prestar um mau serviço áqueles para quem possa querer servir de amplificador.

Os Discursos e a Nossa Orientação de Voto

Será que conhecer e analisar os programas e as opiniões dos líderes dos diferentes partidos é o melhor caminho para decidir pela nossa orientação de voto? Ou será que devemos é votar nos “nossos” independentemente do que pensam, dizem ou fazem?

Acreditando que o voto é uma forma de escolher, concordaremos que vale a pena analisar o discurso dos diferentes partidos e dos seus líderes. É verdade que o discurso em si é apenas um dos elementos a tomar em consideração. Observar as práticas pode ser um elemento tão ou mais importante que analisar o discurso. Práticas na maneira como os “discursadores” se comportam, ou forma como as disputas pela liderança se processam, ou ainda na forma como assuntos de interesse colectivo são geridos. Cada um de nós vai fazendo isso na medida das suas possibilidades de acesso a informação. Mas, parece evidente que entramos aqui num terreno movediço onde a comunicação social joga um papel central pelo poder que tem de mostrar a realidade ou de inventar “realidades” para induzir o nosso pensamento e comportamento.

Concentrarmo-nos no discurso que é exibido – pois, também existe discurso que é ocultado…- pode ser o caminho mais seguro. Pelo menos para começar. E é esse o exercício em que me concentrarei neste espaço.

Estou a assumir que é fundamental que os líderes e os partidos apresentem publicamente o que é a sua visão sobre o que o futuro do país e a formar que pensam exercer o poder se lhes for dado esse mandato. Normalmente esta visão do futuro, e os planos de cada partido deveriam estar assentes nos valores, nas prioridades e na análise que fazem do que são as necessidades de Angola. Permitam-me um parêntesis para dizer que nesse sentido é bastante surpreendente ouvir Luís dos Passos exprimir que não apresenta ainda o seu programa por aguardar que os outros o façam primeiro… a lógica, se entendi bem, e se existe alguma, estaria em evitar sobreposições com propostas a serem feitas pelos outros partidos. Mas, será que o programa de um partido tem de ser diferente, em tudo, de todos os outros programas? No caso de Angola, temos, como os leitores já devem estar a ver, um problema óbvio. Com um número de partidos tão elevado é provavelmente impossível formular-se um tão elevado número de abordagens alternativas e que não tenha qualquer tipo de sobreposição. Ou seja, parece que a nível do discurso – é disso que estamos aqui a tratar -, é inevitável que alguns dos partidos acabem por defender opções semelhantes em alguns aspectos.

Para além das ideias defendidas pelos partidos poderá ser interessante para nós, eleitores, explorarmos os processos internos dos partidos para chegar até elas. O foco é normalmente sobre as ideias publicamente expressas – que nem sempre são ideias que na prática se defende. Estou a assumir que um partido forte deverá ter a capacidade de criar o ambiente interno para que os seus membros participem na construção das opções que são depois apresentadas pelas lideranças aos eleitores. Neste espaço tentarei servir os leitores, contribuindo com elementos para que possam fazer a sua análise. O nosso grande desafio, que nós que termos de escolher teremos de enfrentar, é de conseguirmos encontrar os sinais que distinguem o discurso que é expressão de valores e reais opções, do outro que é apenas engodo caçar votos.

Santos a fazerem política?

Num meio tolerante em relação à batota e aos batoteiros é natural que acabem por ascender e chegar ao topo os cinturões negros da arte (não marcial) de pregar rasteiras, dar golpes baixos e fazer batota. Não será sequer justo criticar ninguém em particular por isso acontecer. Temos apenas de assumir que é assim.

Isto aplica-se a promoções no local do trabalho, à selecção de pessoal para um emprego (incluindo para juízes…), à selecção de empresas para executarem uma empreitada, à atribuição de notas a um estudante, às filas do trânsito e à decisão sobre quem passa primeiro, à atribuição de sentenças por juízes e até, em alguns casos, à atribuição do título de mulher mais bela de uma província…

Será de esperar encontrar no jogo político o uso de regras mais limpas que as usadas pela sociedade noutras situações? É claro que estou a simplificar e que nenhuma sociedade é homogénea. Há uns (indivíduos e grupos) mais batoteiros e outros mais cumpridores das regras para benefício comum. Estou pois a retirar da conversa as regras relacionadas apenas com convenções e que não se reflectem em interesses. Muitas pessoas, em Angola e noutras partes do mundo, entendem que a política – mesmo antes dos negócios – tende a ser o meio mais propício para o jogo baixo e a rasteira.

Um parêntesis: negócios e política até costumam andar de mãos dadas (mãos por vezes dadas por debaixo da mesa, por decoro…). Outras vezes não há nem decoro nem várias mãos… a mesma pode tratar da política e do negócio. É positivo que isso já começe a preocupar. Pelo menos ao nível do discurso dos políticos no poder isso já está presente, o que já é um primeiro passo. Mas também podemos imaginar os mais cínicos a dizer que a preocupação com a corrupção também está presente nos discursos deste a campanha eleitoral de 92 (até de criou uma alta autoridade para combater a corrupção) e nem por isso parece que o assunto seja realmente levado a sério… os menos cínicos poderiam defender que a falta de resultados no combate à corrupação é apenas uma questão de falta de eficácia, mais do que de falta de vontade.

Voltando à questão do tipo de jogo que devemos esperar dos nossos políticos, eu sou dos que acreditam que é fundamental sacudir os cinturões negro do golpe baixo das lideranças dos partidos, das lideranças dos países, das lideranças de seja o que for. A forma como se exerce o poder político acaba por se reflectir em quase tudo o resto. Daí a importância de forçar que o jogo político seja moralizado e moralizador. Mandela, Gandhi e outros já mostraram que isso não é impossível. Raro mas possível. Os políticos capazes de provocar mudanças profundas – do tipo da que necessitamos para acabar com o flagelo da pobreza e injustiça social que nos aflige – só podem ser pessoas com um profundo sentido moral.

Os Mobutus, os Idi Amins e os Mugabes, para falar dos piores, também nos demonstraram (infelizmente Mugabe continua a demonstrá-lo, e não se cansa…) o custo que tem para todos, quando se permite e apoia as lideranças imorais. Estes fizeram um trabalho profundo de “educar” sociedades a não premiarem o mérito mas apenas a lealdade (cumplicidade talvez seja a palavra adequada). Por vezes o mérito é castigado - se não for mérito associado à cumplicidade. Em sociedades como as estes “líderes” ajudaram a construir, a esperteza, a força e a falta de escrúpulos são qualidades bem mais importantes para singrar.

E nós em Angola? Estamos longe das lideranças à Mugabe, à Mobutu ou à Idi Amin… mas não me parece que estejamos a cultivar e a promover lideranças com moral e moralizadoras. São comuns os casos onde se premeia a cumplicidade e se pune o mérito. Sem dúvida que o aproximar das eleições oferece – se soubermos utilizar a oportunidade – a possibilidade de mudar, para melhor, este estado de coisas. E não apenas pelo voto, no dia das eleições. É fundamental que dentro de cada um dos partidos se começe desde já a construir essas mudanças. Considerando o nosso ponto de partida, isto terá de ser um trabalho de folego…

Semear desconfiança

Vamos semear desconfiança! Parece ser o lema central de muitos políticos. Atenção que não estou a propor que se forme nenhuma plataforma pela promoção da desconfiança… Pelo contrário quero reflectir sobre o dano que isto causa.

Alguns exemplos desta prática de promoção de desconfiança, tão comum entre nós:
Afirmar ou insinuar que os que têm posições diferentes das nossas não são sinceros no que defendem mas que as suas motivações reais são escondidas e interesseiras. Desta forma não se chega sequer a discutir as tais posições, utilizando argumentos, indo-se em vez disso pelo atalho mais rápido de desvalorizar quem as defende.
Acusar os que se apresentam como alternativas de liderança dentro dos próprios partidos, como vendidos ao serviço do partido maioritário. É uma variante da linha anterior.
Especular que a possibilidade de realizar as eleições em dois dias é essencialmente uma estratégia para cometer fraude eleitoral. Aliás este fantasma da fraude eleitoral aparece de uma forma quase obsessiva no discurso de muitos políticos da oposição.

Permitam-me que discorra sobre o assunto esquivando-me, por enquanto, a analisar discursos específicos…

Acusar os opositores de não serem sinceros só contribuiria para informar o debate político – e, assim, para nos ajudar a escolher em quem votar – se fosse assente na apresentação de evidências. Isso permitiria também que o acusado se defendesse. Caso contrário apenas cria (reforça, dirão alguns) a ideia de que não se pode confiar nos políticos.

Acusar outros dignitários do mesmo partido – candidatos a líder, ex-líderes ou criadores de facções… – de serem vendidos, pode criar no eleitorado dúvidas sobre a solidez de um partido que conta entre as suas altas esferas, com gente que está à venda. Imaginem as tentações que os que estão em cargos públicos não têm que enfrentar e as oportunidades para serem comprados. Comprados por empresas (estrangeiras ou nacionais), comprados por governos estrangeiros (que no fundo agem muitas vezes como representantes das empresas dos seus países), comprados, enfim, por cidadãos que querem esta ou aquela facilidade. Se um partido não tem capacidade interna para afastá-los – pelo menos do grupo que disputa a chefia interna – é de questionar se conseguirá lidar com este mesmo problema se lhe dermos o mandato para governar. O argumento de que quem está no governo parece ter também dificuldades para lidar com o problema parece um fraco argumento para conquistar o voto de alguém. Talvez um tal argumento não faça mais do que ajudar a aprofundar a desconfiança que já existe e que apenas resulta em paralisia.

Especular sobre o fantasma da fraude sem se dar ao trabalho de buscar soluções técnicas ou outras, para diminuir a possibilidade de ela ocorrer parece contribuir também para o descrédito que apenas nos retira energia.

Deveremos então confiar em tudo e todos até termos provas em contrário? Talvez não… Sugiro antes que quem é candidato para liderar deve, em vez de choradeiras, propor mecanismos e soluções que ofereçam aos cidadãos mais controlo e, por isso, mais confiança.

Mas não tenhamos ilusões, mesmo com mecanismos políticos, administrativos, controlo social, eu sei lá… quando se permite que lideranças imorais cheguem ao poder os roubos ocorrem mesmo quando existem mecanismos de controlo – vejam a propósito o que se passou com os Estados Unidos e a “reconstrução” do Iraque, onde segundo estimativas de uma pesquisa da BBC se terão roubado 23 mil milhões de dólares (sim! 23.000.000.000 dólares).

Voltando à nossa reflexão. Não será que o que esperamos dos nossos políticos é que nos inspirem e nos incutam confiança e energia para colectivamente construirmos as mudanças de que Angola necessita? Não entendo o que procuram os “líderes” que promovem a desconfiança. Estou seguro que nessa procura dificilmente vão encontrar o meu voto…

Aldeia Nova

Estive recentemente no Wako. É um prazer! Apesar daquele troço de estrada depois da Quibala que não se percebe porque não se conclui, e da falta (quase criminosa) de sinalização que quer a estrada quer as pontes que ali se estão a construir apresentam, a verdade é que dá gosto visitar aquelas paragens. Para além da emoção de vermos o nosso País renascer, a beleza das paisagens é esmagadora.

Mas, de tudo o que vi, o Projecto Aldeia Nova foi o que mais me impressionou. Não é fácil ser-se absolutamente racional sobre algo que envolve tantos aspectos cruciais, como acontece nessa iniciativa. Há não só as questões económicas, importantes e que não se devem descurar, mas também, e principalmente, as de ordem social. E isso pode tornar o projecto perigoso, pois é fácil perder-se a objectividade quando se encontram razões que emocionalmente nos compelem a aceitar quase tudo.

O Projecto Aldeia Nova pretende integrar antigos combatentes, sem cor nem fronteiras, numa actividade que permita não só torná-los economicamente activos e auto-suficientes, mas também integrados socialmente, com condições de vida dignas para si e para a sua família. É um projecto que pretende colocar os que o integram, no mapa, outra vez, após anos de conflito e de aniquilação da estrutura sócio-cultural das suas comunidades de origem.

E o mais importante neste projecto, é que ele está a funcionar. Saiu do papel, e das apresentações mediáticas, para algo concreto, que está ali à vista de todos. É tremendamente gratificante ver as novas aldeias, alinhadas e brilhantes, como numa montra, com as suas gentes desfrutando do conjunto de serviços postos à sua disposição. È verdadeiramente animador ver a mais moderna tecnologia a ser empregue nos postos de recolha de leite, nos centros de criação de frangos, ou suínos, saltando-se gerações tecnológicas rumo ao futuro. As escolas, as casas com os seus jardins, e toda a infra-estrutura a funcionar.

É claro que há preocupações a que não podemos deixar de atender: a que custo se está a conseguir o que se pode ver? Qual a eficiência do pólo industrial? Que produtos estão a chegar ao mercado, e com que grau de competitividade? O modelo centralizado de gestão adoptado, não retira eficiência ao projecto? E, quem leu livros sobre a MOSSAD, pode mesmo ter outro tipo de preocupação…Mas a verdade é que não podemos deixar de reconhecer o enorme trabalho que ali está realizado. As centenas de famílias já integradas. Infra-estruturas recuperadas. O reanimar de uma região adormecida. A formação de uma geração que, em contacto com formas muito mais evoluídas de produção agro-pecuária, estarão em condições de, no futuro, tirar rendimentos muito superiores, e entender muito melhor todo esse processo.

O Estado de um país com a nossa trajectória tem que ter consciência das suas elevadas responsabilidades sociais, e da necessidade de investimento em acções que permitam potenciar-nos para competir no futuro com os outros países, nesse injusto mercado global dominado pelos países mais ricos. Não há outra forma que não esta, de investir em projectos complexos, integrando o máximo de angolanos, e colocando-os em contacto com a tecnologia mais recente, e as melhores práticas. E se esse investimento puder ser feito agregando justiça social, e uma equipa de gestão competente, então diria que estamos perante uma solução óptima. Foi algo assim que me pareceu ver no Projecto Aldeia Nova.

Que haja visão e ousadia para investir agora, para poder colher no futuro.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

O Homem Novo

Um dos sonhos mais belos que nos trouxe a brisa forte da independência foi o de ser possível construir um Homem Novo. Como em muitas outras coisas, infelizmente, esta intenção passou a ser mais um elemento de retórica, do que um objectivo sempre presente nos passos que se foram dando no caminho da (re)construção do nosso País. Hoje, banido do vocabulário, o que vemos é mais uma aspiração a homens velhos, em particular nas suas componentes mais negativas: o egoísmo, o desperdício, a ostentação, a falta de respeito pelo outro.

O que poderá estar por detrás disto? Porque será que começa a ser generalizada a opinião, com algum fundo de verdade por certo, de que a nossa juventude está cada vez mais afastada dos valores que julgamos mais importantes, optando pelo culto da violência (que tem sido sublimada, em Luanda, pelo aparecimento dos gangs, tão ao estilo da cultura de violência urbana americana), e pelo ‘espertismo’, esse comportamento cada vez mais presente e que se caracteriza pelo total desrespeito pelo outro, na lógica de se ter como único objectivo o de se ser o primeiro. Os jovens procuram imitar os seus ídolos.

Penso, sinceramente, que os princípios que apressadamente se procuraram incutir na nossa sociedade, com o advento da economia de mercado, instituindo o culto da riqueza material como expoente do sucesso, levam, naturalmente, a que princípios tão importantes como o altruísmo, a solidariedade, e a justiça, se percam. Daí ao desrespeito pelo outro vai um pequeno passo, que é, infelizmente, dado cada vez mais frequentemente. Estamos, ao estilo americano, a procurar construir uma sociedade de ganhadores e perdedores, e, como a experiência comprovada nos países que se guiam por essa lógica nos pode demonstrar, os perdedores são a maioria.

Se o Homem Novo é uma utopia, não deixa de ser uma pela qual vale a pena lutar. A transformação da escola num centro efectivo de educação, e não apenas num local de obtenção de conhecimentos (muitas vezes apenas de um papel que certifique que se tem determinados conhecimentos, que efectivamente não se tem), parece ser um passo essencial para que se possa fazer algo nesse sentido. Valorizar os professores, investir neles, e fornecer-lhes as ferramentas (a par de um salário digno) para que possam transformar os alunos em cidadãos responsáveis, capazes de trazer desenvolvimento e evoluir na vida, não deixando de respeitar o outro e o ambiente, parece ser um primeiro e decisivo passo. Criar uma consciência social generalizada, em que os valores fundamentais como a responsabilidade social, a solidariedade, a honestidade, a dignificação do trabalho, estejam presentes em cada acto governativo, em cada manifestação do poder, e, em particular, no exemplo de todos aqueles que devem surgir como referências na nossa sociedade, parece ser o outro passo fundamental.

Mas para isso seria preciso menos ostentação e mais solidariedade. Igualdade de facto perante a lei, e menos actos que demonstram que há uns mais iguais que outros. Mais respeito pela fila, nos constantes engarrafamentos que uma sociedade em transformação acelerada como a nossa tem que criar, e menos intermitentes e sirenes prepotentes espezinhando todos aqueles por quem se passa, sem sequer se olhar, a não ser de soslaio, e com desprezo.

São precisos Homens Novos para construir o Homem Novo.