domingo, 21 de junho de 2009

Onde Estávamos Nós?

"A perversão do crescimento económico e seus resultados começa quando procuramos substituir a escassez de serviços públicos por privados, procurando no sector privado um triste refúgio para a frustração social. (The perversion of economic growth and its fruits begins when we attempt to make up for the scarcity of public goods by producing more private ones, and to find in private consumption a barren solace for social frustration.)" Roberto Mangabeira Unger

Quando li o texto de Prince Mashele no Mail & Guardian Online, não pude deixar de reparar nas semelhanças que existem entre as sociedades sul-africana e angolana, em particular, e, de um modo geral, entre todas as sociedades dos países eufemisticamente considerados em vias de desenvolvimento, nomeadamente aqueles que conseguiram criar bolsas de riqueza num mar de pobreza e injustiça.

Mas isto é já por demais conhecido, e, tal como com os antibióticos, tornou-se tão comum referi-lo, que o nosso organismo, a nossa consciência, deixou de ser afectada por este tipo de preocupação. Construímos o nosso mundo, de janelas pintadas, e esquecemo-nos dos outros.

O que gostei no artigo que refiro, é a forma directa como somos confrontados com a realidade. É tão fácil refugiarmo-nos num microcosmo que construímos, até para satisfazer a nossa necessidade de nos sentirmos bem connosco próprios… É a técnica da caridade cristã. Faz-se uma boa acção por dia, e podemos ficar de bem com a nossa consciência. Entretanto colocamos, se podemos, os nossos filhos em escolas privadas, ou mandamo-los para o exterior, vamos a clínicas privadas, e até contratamos segurança privada para proteger os bens que acumulamos… Como dizia Maiakovski num célebre poema, enquanto a injustiça se desenrola no quintal do vizinho, viramos a cara para o lado. Mas há um dia que ela nos irá tocar. É inevitável. E aí colocar-nos-emos a pergunta, talvez demasiado tarde: onde estávamos nós quando se começou a registar a falência das instituições públicas? Aquelas que devem garantir, a todos, um nível aceitável de serviços, e de vida?

Acredito sinceramente que só com o exemplo de quem lidera se pode fazer com que os liderados ajam de forma a que o país avance na direcção certa. E isso é uma responsabilidade que começa nos dirigentes do País, e se estende por todos os que podemos, nas nossas áreas de actividade, influenciar aqueles com quem lidamos.

Temos que gostar do nosso país. Mas é fundamental que isso não seja apenas um sentimento abstracto. Não basta deleitarmo-nos com as paisagens, ou os acidentes naturais de que profusamente a mesma se encontra polvilhada, nem exultarmos com as vitórias das nossas selecções. É preciso termos orgulho das nossas instituições. Só quando pudermos falar com orgulho dos nossos políticos, da nossa administração pública, da nossa polícia, dos nossos hospitais e escolas públicos, é que poderemos sentir verdadeiro orgulho em Angola.

E para isso, como dizia Bertold Brecht, não basta lutar um dia, apesar de isso já ser bom. Para que sejamos imprescindíveis, teremos que o fazer toda a vida.

Os pardais e as andorinhas

Os factos que relato a seguir são absolutamente fidedignos. As conclusões pode ser que sejam precipitadas, fruto de uma distorcida experiência de vida.

Tenho a felicidade de ter uma varanda onde os pássaros escolheram fazer ninho. Confesso que, numa reacção própria do género humano, a minha atitude inicial foi de preservação da propriedade, mas, felizmente, a razão falou mais alto, e logo me foi dado descobrir que era um verdadeiro privilégio partilhá-la com espécies que só podiam melhorar a minha relação com o espaço circundante.

Num dos extremos da varanda, num pequeno projector que ali tenho, os pardais foram os primeiros a manifestar a sua intenção de ali se instalarem. Num frenesim digno de nota, começaram a transportar pedaços de capim, transformando, num ápice, o projector num local de acolhimento que fazia pena. A técnica construtiva era uma desgraça, e os pobres pardais todos os dias tinham que devotar horas a remendar o que tinha sido tão mal projectado. Isso não os impediu de ocuparem efectivamente o local, levando-nos a não acender mais o projector, por razões óbvias, e desenvolverem a sua relação matrimonial, culminando com o gratificante aparecimento de novos seres, uma ninhada que ali foi criada. Mas dava dó, nos momentos que podíamos estar na varanda, ver o rodopiar dos pardais, a remendar o ninho, que, de tão mal feito, escorregava por todos os lados do projector.

Isto passou-se , e estavam os primeiros pardalitos criados, apareceram umas andorinhas que, no outro extremo da varanda, começaram a construir o seu ninho. Que diferença!. Num grupo de três, trabalhavam incansável e metodicamente. Uma técnica construtiva elaborada foi permitindo ver surgir perante os nossos olhos um refúgio de barro que apresentava características em tudo superiores ao dos seus vizinhos. Demorou. Numas longas três semanas, bicada a bicada, as andorinhas fizeram surgir o seu ninho de formas perfeitas, enquanto os pardais continuavam na sua tarefa de remendar o que tinham tão mal construído. Um dia vimo-las, finalmente, desfrutar do que tinham tão arduamente conseguido fazer. Os seus voos magníficos eram uma elegia ao esforço que tinham dispendido para fazer algo que parecia estar ali para durar.

Atrevi-me então, a tirar uma primeira conclusão: o esforço planificado com vista à obtenção de um produto de qualidade, ainda que demorasse mais a poder ser usufruído, valia a pena, pelas vantagens que traria no futuro. Estava feliz com a conclusão. Estava de acordo com os meus princípios, e era uma bela lição de gestão, e de vida..

Para minha surpresa, na semana seguinte, vi um ataque dos pardais à propriedade das andorinhas. Postavam-se à entrada do ninho, e procuravam impedi-las de a ele aceder. Eu não queria acreditar no que estava a suceder! As pobres andorinhas procuraram defender o que tinham construído com tanto esforço, mas debalde. A presença dos pardais, mais encorpados, acabaram por fazê-las desistir, e foi com uma enorme frustração que vi os pardais apoderarem-se do ninho que não tinham construído.

Ainda pensei interferir, mas achei por bem não tomar parte nos desígnios da Natureza, e foi com a alma sombria que retirei uma segunda conclusão: este Mundo é dos espertos, e não há, evidentemente, justiça. Nem sempre os que mais se esforçam são recompensados.

E foi com este estado de espírito que vi os pardais procriarem novamente, no ninho das andorinhas. Reconheço que não desfrutei como devia do espectáculo que constitui a alimentação dos pequenos seres. A boca aberta dos pardalitos disputando do bico dos pais o sustento. O seu trinar inseguro. Eles não tinham culpa, mas não podia deixar de pensar no que se tinha passado, e como os pais tinham agido para com os verdadeiros proprietários daquele espaço.

Os pardalitos cresceram, e procuraram fazer o seu primeiro voo. Não sei se pelo facto da configuração do ninho não estar adequada à sua espécie, acabaram por cair, e a minha cadela, uma pastora alemã que também gosta de estar na varanda, matou-os.

Decidi não retirar mais nenhuma conclusão. Hoje, os ninhos estão abandonados. E eu, com uma sensação incómoda que não consigo definir.

Ás 5 da Manhã

Havia todo um conjunto de coisas que se podiam fazer às 5 da manhã! Era, normalmente, a hora em que iríamos surpreender o Sol, esse despertador universal desta vez traído, a nascer, esfregando o olho enorme, sobre uma paisagem de imbondeiros e esperança, numa agradável viagem pelo interior do país. Podia representar o acto de penitência, ligado à expectativa de umas férias merecidas, e que começavam com esse insensível despertar, prelúdio da caminhada que nos levava, ensonados, ao aeroporto. Ou a recordação das madrugadas na lavra, nas jornadas revolucionárias do passado, aprender para melhor servir, semeando, na frescura da manhã, uma paragem mais tarde para o matete, a jornada interrompida logo que o Sol fosse alto. As 5 da manhã era o limiar do místico. Antes disso, era quase obsceno!

Hoje, é a hora da já interminável fila de viaturas que se aventura, numa vaga contínua, pelas margens estreitas das vias de acesso ao centro de Luanda, dia após dia, para desaguar num mar exíguo e que, minuto a minuto, vai transbordando de carros e incompreensão. A poesia do momento foi-se, e mesmo o rei Sol, cujo olhar é ignorado pelos seus ignorados súbditos, já não se surpreende por acordar no meio de tamanha confusão.

Luanda acorda cedo. Como dizia uma cidadã, nascida na pacata vila de Calulo, numa conversa com um seu conterrâneo, que ali surpreendi: Luanda, hoje em dia, só para ir de férias! Olha só - e mostrou o telemóvel, o despertador toca às quatro e meia! E depois é só engarrafamento, até de pessoas! E aguentar isso todos os dias…

Não deixa de ser curioso, na torrente de veículos que procuram evitar a hora de paragem das águas, verificar uma certa democracia no sacrifício. Há carros de todos os tipos, e o VX, convive, aparentemente sem qualquer problema, com o starlet que já transporta os primeiros clientes. As cenas que se podem observar são as mais variadas, desde a típica cena familiar da mãe que vai cuidando das crianças ainda adormecidas, aos que aproveitam, quando têm um condutor para os transportar, para se abandonarem na ponta final do sono. Os mais sofisticados consultam mesmo os primeiros documentos do dia, à luz de uma lanterna portátil. Mas o mais comum, é ver pessoas já aquela hora com um grau de ansiedade que transparece nos olhos e nos gestos. Na brusquidão da condução. Na intolerância com que se tratam. Pergunto-me se não estaremos a perder a bonomia que nos caracterizava, caminhando, a passos largos, para o carácter cinzento que tanto criticávamos nos outros. Pergunto-me se não nos estaremos a perder nesta corrida para nenhures, na procura desenfreada por um rápido crescimento, sacrificando o importante em detrimento do imediato. Luanda está indubitavelmente a crescer. E está sem dúvida materialmente mais rica. O número de viaturas é uma prova viva disso. Mas os sonhos interrompidos, todos os dias, no abrir de olhos para a noite, está a fazer de nós pessoas mais pobres.

Como dizia recentemente o Presidente da República, no Fórum da Habitação, é preciso encontrar soluções para melhorar a qualidade de vida do cidadão luandense. É preciso criar novas centralidades, e, de caminho, preservar o pouco que nos resta de característico na nossa velha cidade. O aumento de pressão sobre a baixa de Luanda, e o seu centro histórico, com a proliferação de símbolos fálicos um pouco por todo o lado, sem a preocupação de antes se adequar a infra-estrutura às necessidades que os mesmos criam, não pode ser a solução. É preciso restituirmos a poesia ao amanhecer. E colocar, com o Sol nascente, um sorriso no rosto de cada um dos nossos concidadãos.

Temos que conseguir deixar o Sol, o despertador universal, reocupar a sua função.

terça-feira, 7 de abril de 2009

O Código e a Conduta

Excitadíssimos com o advento de um novo instrumento para que se dê mais um passo na direcção do melhor que se faz no Mundo, o novíssimo Código de Estrada, não podemos deixar de reflectir sobre as suas implicações. Como para validar o ditado, por nós adaptado, das mil chuvas de Abril, o céu não se tem feito rogado, e colocou-nos uma vez mais à prova. A importância da chuva, neste contexto, não tem a haver apenas com o caos que imediatamente toma proporções alarmantes na nossa cidade, mas é igualmente um verdadeiro teste a todos os que podem credibilizar este esforço legislativo.

Reconheço em mim algum cepticismo perante o entusiasmo que determinadas iniciativas provocam, em particular quando as mesmas surgem de cima para baixo. É verdade que é um factor importante para provocar a mudança, a promulgação de novas leis. O meu cepticismo, no entanto, baseia-se na incapacidade que temos vindo a demonstrar quando procuramos traduzi-las em prática. E para verificarmos isso não precisamos de ir muito longe. Basta ver a quantidade de carros ‘novos’ que continuam a ser importados sem as mínimas condições técnicas, enchendo de fumo e ferro velho as nossas degradadas vias, contrariando posturas que isso deveria impedir. No que respeita ao Código de Estrada, o que me preocupa é a criação de condições para que ele possa efectivamente ser seguido. E não falo apenas nos artefactos para ligar o telemóvel ao auricular, ou a cadeira para o bebé, ou os cintos de segurança que serão um problema para os azulinhos. Falo na sinalização rodoviária, nas estradas em condições, no comportamento de todos os utentes da via pública…

E aí entram as mil chuvas de Abril. Não há código que resista á imobilidade dos responsáveis pela conservação das vias que se desfazem inexoravelmente sob o olhar horrorizado dos automobilistas, um pouco por toda a cidade, provocando monstruosos engarrafamentos logo às primeiras horas da manhã. Não há código que resista ao comportamento dos nossos concidadãos ao volante, em particular quando aumentam os obstáculos. As dificuldades exacerbam o que de pior há em nós, e nestes momentos de maior pressão, vem ao de cima o que vimos exercitando de mais malévolo, sendo o espertismo e a falta de respeito duas das consequências mais visíveis na estrada. Em cada ponto de constrangimento, o número de filas que se podem formar tende para o infinito, prejudicando, naturalmente, aqueles que procurarem seguir alguma espécie de código. E a regra de que quanto mais se prevarica, mais rapidamente se passa, é invariavelmente seguida.

Bom, mas não vamos ser pessimistas. Reconheçamos que é importante actualizar o que está caduco. Mas que se tenha consciência que há coisas que estão ao nosso alcance fazer e que não estão a ser feitas. E que é importante fazê-las para que os objectivos sejam atingidos. Parece fundamental que as administrações municipais intervenham de forma mais activa na conservação das vias terciárias, o que passa muitas vezes pela reparação de pequenos buracos, e pela limpeza das valas de drenagem. Que a estrutura provincial não deixe que as vias principais se degradem, mesmo que tenha que adoptar medidas provisórias com o carácter de emergência. E que haja uma enorme campanha no sentido de se criar uma nova mentalidade na nossa gente, para que todos, mas mesmo todos (incluindo os motociclistas e as viaturas oficias!), cumpram a lei e colham os benefícios..

A questão do trânsito tem enormes implicações sociais, económicas, ambientais e até de saúde pública. E, neste momento, tanto ou mais que um novo Código de Estrada, precisamos de um novo Código de Conduta.

segunda-feira, 30 de março de 2009

Pensava no meu pai

Neste dia cinzento, em que o calendário proporcionou mais uma oportunidade de descanso, descobri-me a pensar no meu pai. É estranho como pessoas que nos são tão próximas se afastam dos nossos pensamentos por períodos às vezes tão prolongados.

O meu pai foi o protótipo dos homens vindos de Portugal na década de 50 do século passado. Baixo, calvo, emanava entretanto uma rara sensação de força. Os olhos vivos, na sua cara resoluta, onde pontificava o nariz sem cana, que tinha partido nas suas aventuras de boxe quando era jovem, transmitia uma enorme decisão e auto-confiança, e igualmente uma ternura que não se suspeitava nos seus gestos. Os braços fortes, as mãos poderosas, eram quase uma contradição na sua figura moldada num metro e sessenta de barro, que se impunha onde estivesse pela sua decisão. Não me recordo dele nalgum momento de lazer. Sonhador, procurava dar forma aos seus sonhos, ainda que atropelasse as etapas e os resultados nunca fossem exactamente os desejados. Tampouco me recordo dele numa atitude de desânimo. A capacidade de se adaptar ao infortúnio, e de retirar forças dos fracassos momentâneos nunca a parece ter perdido, a não ser talvez no fim, quando na luta com o tumor maligno, não conseguiu aceitar a realidade, e encarar aquela luta como a derradeira, apesar de toda a sua vontade de a vencer.

Um entre dezasseis, dos quais sobreviveram doze, era um lutador que desde cedo aprendeu que a sobrevivência tinha que ser ganha a pulso. Nascido nas ilhas atlânticas dos Açores, recordo-me das suas primeiras recordações, quando ia com os irmãos à pesca naquelas águas revoltosas, e nos seus 5 anos, tinha a função de rezar. ‘Reza. Manel, reza’, dir-lhe-iam os irmãos nos momentos mais críticos, e eu imagino o olhar apavorado do menino-homem que seria o meu pai então… Trabalhando desde muito cedo, aos sete anos já procurava ganhar a vida ajudando na mercearia local, sempre teve para com o trabalho um reconhecimento exemplar, como se ali visse o caminho que lhe teria permitido escalar as montanhas dos seus sonhos, ganhar a sua independência, e construir algo seu, do qual muito se orgulhava. Nunca teve muito, mas o suficiente para pôr os sete filhos a estudar, e a tudo o que tinha dava o valor que se dá àquilo que é conquistado com o suor do rosto, e as penas da desilusão, no balanço entre a realidade e o sonho.

O meu pai não foi um pai carinhoso, mas justo. Quando vejo uma foto que tenho dele a beijar a testa de um dos meus filhos, quase sinto ciúme, pois não me lembro de gesto igual para comigo. No entanto, tinha um enorme orgulho nos filhos. De poucas palavras, não recordo muitas conversas. Apenas aquela em que me tratou pela primeira vez como um homem, olhando-me de igual para igual, eu na força da minha adolescência, e me falou nas coisas importantes da vida, na sua perspectiva, deixando-me conduzir o seu Datsun 1200, num passeio pela Ilha. Tão imerso estava nas suas palavras que, no regresso, acabei por cruzar em sentido contrário a Mutamba, nos tempos em que ainda se subia a Amílcar Cabral a partir da Marginal, e se tinha que curvar na Rua da Missão. Felizmente, eram tempos em que também não havia trânsito, e não houve consequências deste acidente de percurso. Noutra ocasião, quando inflamado defendia os meus pontos de vista revolucionários, numa plateia de pessoas mais velhas, de ideias contrárias às minhas, e que me procuravam desqualificar, por imberbe e inconveniente, foi ele que se levantou e deu literalmente um murro na mesa a exigir respeito por mim e pelas minhas opiniões, que eram, aliás, contrárias às dele.

Nas raras conversas que temos, os irmãos, em que emerge a figura do meu pai, a par da enorme confiança que em nós depositava, dando-nos tarefas com responsabilidades bem acima da nossa idade, surgem muitas vezes retratos das ocasiões em que o seu rigor se traduziu por alguma repreensão mais violenta. Um tabefe com as suas mãos calejadas, ou mesmo uma tareia de cinto, previsível porque motivada, em que a vítima se preparava, e vestia antes de se apresentar, mais umas calças e uma camisola, não eram frequentes mas aconteceram. Mas em nenhuma sinto o menor sentimento de rancor. As regras sempre estiveram extremamente claras, e as obrigações eram conhecidas, assim como os riscos da prevaricação.

O meu pai preparou-nos para a vida. E nós estamos-lhe profundamente agradecidos.

Pensava no meu pai

Neste dia cinzento, em que o calendário proporcionou mais uma oportunidade de descanso, descobri-me a pensar no meu pai. É estranho como pessoas que nos são tão próximas se afastam dos nossos pensamentos por períodos às vezes tão prolongados.

O meu pai foi o protótipo dos homens vindos de Portugal na década de 50 do século passado. Baixo, calvo, emanava entretanto uma rara sensação de força. Os olhos vivos, na sua cara resoluta, onde pontificava o nariz sem cana, que tinha partido nas suas aventuras de boxe quando era jovem, transmitia uma enorme decisão e auto-confiança, e igualmente uma ternura que não se suspeitava nos seus gestos. Os braços fortes, as mãos poderosas, eram quase uma contradição na sua figura moldada num metro e sessenta de barro, que se impunha onde estivesse pela sua decisão. Não me recordo dele nalgum momento de lazer. Sonhador, procurava dar forma aos seus sonhos, ainda que atropelasse as etapas e os resultados nunca fossem exactamente os desejados. Tampouco me recordo dele numa atitude de desânimo. A capacidade de se adaptar ao infortúnio, e de retirar forças dos fracassos momentâneos nunca a parece ter perdido, a não ser talvez no fim, quando na luta com o tumor maligno, não conseguiu aceitar a realidade, e encarar aquela luta como a derradeira, apesar de toda a sua vontade de a vencer.

Um entre dezasseis, dos quais sobreviveram doze, era um lutador que desde cedo aprendeu que a sobrevivência tinha que ser ganha a pulso. Nascido nas ilhas atlânticas dos Açores, recordo-me das suas primeiras recordações, quando ia com os irmãos à pesca naquelas águas revoltosas, e nos seus 5 anos, tinha a função de rezar. ‘Reza. Manel, reza’, dir-lhe-iam os irmãos nos momentos mais críticos, e eu imagino o olhar apavorado do menino-homem que seria o meu pai então… Trabalhando desde muito cedo, aos sete anos já procurava ganhar a vida ajudando na mercearia local, sempre teve para com o trabalho um reconhecimento exemplar, como se ali visse o caminho que lhe teria permitido escalar as montanhas dos seus sonhos, ganhar a sua independência, e construir algo seu, do qual muito se orgulhava. Nunca teve muito, mas o suficiente para pôr os sete filhos a estudar, e a tudo o que tinha dava o valor que se dá àquilo que é conquistado com o suor do rosto, e as penas da desilusão, no balanço entre a realidade e o sonho.

O meu pai não foi um pai carinhoso, mas justo. Quando vejo uma foto que tenho dele a beijar a testa de um dos meus filhos, quase sinto ciúme, pois não me lembro de gesto igual para comigo. No entanto, tinha um enorme orgulho nos filhos. De poucas palavras, não recordo muitas conversas. Apenas aquela em que me tratou pela primeira vez como um homem, olhando-me de igual para igual, eu na força da minha adolescência, e me falou nas coisas importantes da vida, na sua perspectiva, deixando-me conduzir o seu Datsun 1200, num passeio pela Ilha. Tão imerso estava nas suas palavras que, no regresso, acabei por cruzar em sentido contrário a Mutamba, nos tempos em que ainda se subia a Amílcar Cabral a partir da Marginal, e se tinha que curvar na Rua da Missão. Felizmente, eram tempos em que também não havia trânsito, e não houve consequências deste acidente de percurso. Noutra ocasião, quando inflamado defendia os meus pontos de vista revolucionários, numa plateia de pessoas mais velhas, de ideias contrárias às minhas, e que me procuravam desqualificar, por imberbe e inconveniente, foi ele que se levantou e deu literalmente um murro na mesa a exigir respeito por mim e pelas minhas opiniões, que eram, aliás, contrárias às dele.

Nas raras conversas que temos, os irmãos, em que emerge a figura do meu pai, a par da enorme confiança que em nós depositava, dando-nos tarefas com responsabilidades bem acima da nossa idade, surgem muitas vezes retratos das ocasiões em que o seu rigor se traduziu por alguma repreensão mais violenta. Um tabefe com as suas mãos calejadas, ou mesmo uma tareia de cinto, previsível porque motivada, em que a vítima se preparava, e vestia antes de se apresentar, mais umas calças e uma camisola, não eram frequentes mas aconteceram. Mas em nenhuma sinto o menor sentimento de rancor. As regras sempre estiveram extremamente claras, e as obrigações eram conhecidas, assim como os riscos da prevaricação.

O meu pai preparou-nos para a vida. E nós estamos-lhe profundamente agradecidos.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Laços que não se apagam

A visita de Raul Castro ao nosso país foi um acontecimento de rara carga emocional. Cuba não nos pode ser indiferente. Admito que não desperte o mesmo tipo de emoção em todos nós. Nem todos estávamos do mesmo lado. Mas todos temos que reconhecer o papel decisivo que nuestros hermanos tiveram no pré e pós 11 de Novembro de 1975.

Para mim, Cuba é o expoente da coerência na luta desinteressada por um ideal. A forma como aquele pequeno país das Caraíbas se envolveu sem hesitações num processo de desfecho imprevisível, com adversários directos temíveis, e sob a sombra do gigante do Norte, é, no mínimo, exemplar. Só o simples facto de ser um pequeno país, com poucos recursos materiais, que só podiam emprestar a enorme força do ideal por que lutavam, e o seu sangue, os tornavam únicos. E foi assim. Cuba não foi apenas o génio e sacrifício de heróis como o Comandante Arguelles, o arquitecto da batalha do Ebo, decisiva para se travar o avanço sul-africano em direcção a Luanda, naquele 1975 conturbado, em que procurávamos salvar uma bandeira. Foi, quiçá principalmente, o espírito exemplar dos médicos, dos professores, dos internacionalistas que por aqui passaram, sempre com humildade e sentido de sacrifício a que não podíamos ficar indiferentes.

A História recente de Angola está indubitavelmente ligada al Caimán… E os reflexos permanecerão por muito tempo. Não só porque ela acabou por ser marcada por decisões que foram tomadas em momentos críticos, e que influenciaram o curso dos acontecimentos, como pelos milhares de jovens que foram acolhidos na ilha caribenha para receberem formação aos mais vários níveis.

Quando Fidel se manteve fiel à ortografia, e fez lembrar que Neto se escrevia com ‘e’, estava a influenciar a História. Quando decidiu que não podia ficar indiferente aos avanços dos carcamanos, e se uniu às FAPLA em direcção ao Calueque, e no Cuito-Cuanavale, estava a escrever a História. Quando, após os acordos de Nova York que levaram à independência da Namíbia (onde estava a continuação da nossa luta), os internacionalistas cubanos regressaram à sua terra natal, com os seus ideais, e os seus mortos, e o sentimento do dever cumprido, estavam a fazer História.

Mas nem só de grandes acontecimentos foi marcada a passagem dos cubanos por Angola. Eu recordo os meus professores cubanos com carinho. A abnegação do professor Santana, na reconstrução do laboratório de máquinas eléctricas do Departamento de Electrotecnia, ou a genialidade do Ivan, nas suas sempre impecáveis aulas de matemática. Os fins de semana que passavam, em zonas do teatro operacional, em acções de guarda a objectivos estratégicos, punham-nos de sentido! A disponibilidade e o rigor que demonstravam, faziam crescer o respeito que por eles sentíamos. Eram os pequenos gestos de quem tinha uma missão que transcendia a simples actividade de leccionar.

A vinda a Angola del Compañero Raul Castro foi um momento de rara emoção. Pelo menos para os que acreditam que se procurou com a independência encontrar um caminho que levasse à justiça social em Angola. A sua visita ao nosso mais velho Lara, foi um gesto que calou fundo. Não se esquecem os amigos.

Há laços que se criam com boas intenções. Outros, com a mistura do suor e sangue. Esses não se podem apagar.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Filosofia com sabor local

As palavras podem ter tantos sentidos diferentes e podem conter tantas ideias... mas também podem ser só palavras, com pouco sentido, ou mesmo sem nada lá dentro. Permitam-me brincar um pouco com as palavras e com as ideias (ou com a falta delas...) adaptando algumas linhas filosóficas, ao nosso contexto local.

Uma coisa que acontece com as ideias, e com as palavras, é serem frequentemente entendidas pela metade, ou mesmo completamente deturpadas. Mas consigo ver um papel positivo e criativo nesta salada de palavras e ideias a serem constantemente recriadas, exactamente por ficarem pela metade. Quem tem tempo para ficar a pesquisar e a reflectir profundamente sobre as ideias e as palavras? Isso é para os teóricos, dizia um tipo com um copo de cerveja na mão, eu cá sou pessoa de acção!

Pensando com os meus botões e tentando aproximar algumas palavras que fui lendo ou ouvindo por aí, um pouco à pressa é verdade, e observando muita acção, por vezes desavisada... fui identificando uma série de linhas “filosóficas” e o seu reflexo na prática:

• O construtivismo parece ser uma linha marcante no nosso pensamento. Ao longo destes últimos anos, tem-se manisfestado na tentativa de transformar o país num canteiro de obras. Obras de construção civil...
• O positivismo é outra linha que há quem dispute como sendo talvez ainda mais marcante do que a anterior. Só ver avanços e melhorias e ter dificuldade em enfrentar a menor crítica. Asseguro-vos que mesmo entre as organizações da sociedade civil, esta linha é muito forte, ao analisar a sua acção. Já os partidos da oposição seguem quase que um positivismo de sentido contrário.
• O materialismo foi antes dos anos 90 bastante influente. Apesar da queda do muro de Berlim vê-se que ficou alguma influência. É vísivel na sofreguidão para acumular tudo o que é bem material: carros na garagem, apartamentos, (e "companheiras" lá dentro... dizia um “filósofo” local). Talvez a linha dos constitucionalistas polígamos seja uma derivação deste tipo de materialismo.
• O espiritualismo poderá parecer para alguns como contraditório com o materialismo, mas é visível o pragmatismo com que alguns associam os dois acumulando bens materiais e consumindo, sofregamente, bebidas espirituosas...
• As ideias de Confúcio, o confusionismo, são adoptadas um pouco por todos – com os condutores de Luanda entre os mais radicais seguidores - mas algumas organizações da sociedade civil parecem ser também expoentes desta linha de pensamento.
• Estava alguém a sugerir o zedunismo como linha de pensamento mas apercebi-me de que era disparate e se estava a fazer confusão com hedonismo (busca do prazer e recusa da dor como razão de ser da vida). Este hedonismo é o que acabamos por seguir na forma como vivemos as outras linhas filosóficas.

Nota-se também que a abordagem científica marca a acção política e de mobilização pública. O princípio de que “nada se cria nem nada se perde, mas tudo se transforma” resulta em que não se espere pelo surgimento de coisas a partir do nada. Daí as acções de programação da espontaneidade dando-lhe, em simultâneo, movimento (por causa do “tudo se transforma”...). E foi assim concebido o Movimento Espontâneo que parece contar com bastante programação para não se deixarem as coisas ao acaso e à espontaneidade.

Voltando às marcas que nos ficaram de outros tempos temos o internacionalismo que continua a influenciar-nos e que nos leva a tentar acompanhar as nossas equipes de futebol nas digressões ao exterior. Estes acompanhamentos são frequentemente coloridos com movimento e com espontaneidade. Outra influência do internacionalismo é a forma como, dada a influência cubana, muitos de nós usam a língua (estou a falar do portunhol...). Por falar nisso... acho que já chega de dar à língua. Chego à conclusão que isto de filosofia tem o que se lhe diga.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

As Tradições

No acumular de experiências, os Povos foram seleccionando comportamentos e regras que se transformaram em tradição. Faz parte do processo de evolução das sociedades. As tradições, necessariamente datadas, porque adaptadas às condições que as determinaram, foram mudando ao longo dos séculos. É o que parece normal.

Infelizmente não é raro fazer-se recurso á tradição para travar o progresso. E isso é válido tanto para o apedrejamento das mulheres adúlteras, quanto para o corte da mão do ladrão, ou o pagamento de alembamento, lobolo, ou como lhe quisermos chamar. É válido para a poligamia.

O mal da tradição é servir para legitimar situações na contramão da história e da lei, carregando-as de uma carga social que faz com que as pessoas que possam discordar tenham receio de ser apelidados de anti-populares. Ou de hereges! O mal da tradição é poder ser utilizada como arma de arremesso de pessoas mal-intencionadas, sempre que as mesmas procuram agitar com base mais na emoção que na razão.

As recentes alusões a uma eventual proposta para a inclusão na Constituição da possibilidade da poligamia, não parece fazer qualquer sentido. Assim como não me pareceu fazer sentido as respostas pouco enérgicas dos dirigentes dos partidos que foram confrontados com tal questão. Parece estarem todos preocupados com a sua situação pessoal, ou com o efeito das suas palavras num eleitorado predominantemente machista. O problema que se coloca quando se fala de poligamia, é o do respeito pela mulher (a não ser que se esteja a alargar a possibilidade de haver não apenas ‘A Outra’, como canta o Matias Damásio, mas também ‘O Outro’!). O problema é igualmente o da preservação do núcleo familiar, e dos tais valores morais, que foram referidos no discurso de fim do ano de Sua Excelência o Presidente da República. É claro que há questões que a sociedade devem abordar sem rebuço, e encontrar as soluções que se impõem. Não se pode enterrar a cabeça na areia e fingir que as situações não existem. É evidente que se deverá, apesar de haver legislação para isso, reforçar os direitos das famílias que se formam ‘fora de casa’, em particular o direito dos filhos. Mas o que parece evidente igualmente é que não se deve encorajar esse tipo de solução, em particular quando o país caminha a passos largos para a normalidade, e as situações decorrentes das fragilidades criadas pela instabilidade, tendem a acabar.

As tradições (e as religiões) procuraram legitimar situações que afectavam as sociedades no momento em que elas se estabeleceram. Nada é eterno. A vantagem de sermos seres humanos está na possibilidade de sermos objectivos nas análises que fazemos, e encontrarmos as soluções mais adaptadas, sem os espartilhos das regras impostas pelo passado, muitas delas desactualizadas. Não desrespeitar o passado e a tradição, mas enquadrá-los de forma consciente na sociedade actual. Procurar manter o que é positivo, como a protecção da família, e o respeito pelos mais velhos, e revogar o que está caduco.

O exemplo que é muitas vezes esgrimido, o da quinta esposa do Jacob Zuma, não parece colher. É só mais um dos vários maus exemplos que deu.

sábado, 17 de janeiro de 2009

O Censo e a Toponímia

As invenções mais importantes para a Humanidade foram aquelas que se transformaram em algo tão essencial ao dia a dia, que passaram a fazer parte das leis da natureza, sem ter o nome do inventor associado. É claro que não falo da gravidade, ‘inventada’ por Sir Isaac Newton!! Essa, é claro, já lá estava, e ele só a descodificou matematicamente. Mas falo de coisas como o controlo da utilização do fogo, da roda, da linguagem e sua estruturação, da domesticação de plantas e animais. Falo dos números. Há um infindável cortejo de invenções elegíveis para este mostruário de coisas indispensáveis à nossa vida actual, e que parece que sempre existiram.

Mas hoje gostaria de abordar a importância da numeração. Não me detendo demasiado nos pormenores, como a invenção do zero, bendita criação árabe, que o génio grego, ou a organização romana, não alcançaram, a verdade é que um mundo sem números teria que ser completamente diferente. Pergunto-me se os números não terão sido uma consequência directa da acumulação. Há um momento em que já não basta dizer ‘muito’ ou ‘pouco’, ‘longe’ ou ‘perto’, é preciso quantificar. E, naturalmente, para a organização das sociedades em sistemas mais complexos, como o Estado, a numeração é fundamental. Não apenas para identificar, como também para poder medir propriedades e riqueza. Para poder estabelecer os impostos. Para controlar.

Eis outra questão que filosoficamente nunca foi resolvida. A contradição entre a liberdade e o controlo. Ainda há países onde se discute se a obrigatoriedade de se ter um bilhete de identidade não atenta contra a liberdade do indivíduo. Mas, por outro lado, parece claro que o Estado também não pode cumprir cabalmente com as suas obrigações sem que haja um controlo das suas populações. Não há planificação sem estatística, e não pode haver estatística sem censo. E censo é controlo. Mas parece fundamental.

Assim como parece fundamental poder localizar qualquer ente jurídico, colectivo ou individual. O que não faz qualquer sentido é um indivíduo, ou uma empresa, colocarem no espaço onde devem escrever o endereço: Rua Sem Nome, Casa Sem Número. Infelizmente isso é o que acontece com muito boa gente, em particular na cidade de Luanda. Quase me atreveria a dizer, com a maioria da gente. Por qualquer motivo, as novas ruas e as novas casas deixaram de estar identificadas. Os bairros lá vão tendo nome porque a vox populi logo se transforma em nome oficial, e assim aparecem nomes coloridos, sem que se saiba bem porquê, como é o caso do Rocha Pinto, Terra Vermelha, Cantinton, Morro Bento ou Talatona. Mas a maioria das ruas permanece por identificar. As casas por numerar. Chegou-se ao cúmulo de vermos empresas, como a EDEL, a numerar as casas nalguns bairros, para poderem fazer contratos com os moradores.

A toponímia é essencial para a organização de uma cidade. A não atribuição de numeração às propriedades cria não só dificuldades práticas ao cidadão, pois este nunca sabe muito bem como indicar onde vive, como afecta tudo o que se relaciona com o mesmo. A polícia, a justiça, as empresas, os bancos, os seguros, têm como denominador comum a necessidade de poder identificar de uma forma inequívoca o local de residência ou o estabelecimento das entidades com quem lida, para poder cumprir com a sua função.

E como será possível fazer um censo sério sem este pressuposto?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Solidários com os povos oprimidos? Ou com os opressores?

As perguntas das crianças são muitas vezes estimulantes pela perspectiva límpida, quase que não afectada por preconceitos ou interesses estreitos. Estou ainda a pensar nas perguntas que ouvi de uma criança sobre o que é terrorismo e sobre o que se está a passar em Gaza.

Essas reflexões misturaram-se com a recordação de quando, até há bem pouco tempo, trabalhava mesmo ao lado de uma escola primária e escutava todas as manhãs a criançada a cantar o hino: “Solidários com os povos oprimidos...”. Palavras redigidas quando a nossa onda era outra. Fico sempre um pouco entristecido ao ouvir as crianças a falarem como papagaios. Fico com medo que estejam a ser preparadas para dizerem uma coisa e fazerem, e tolerarem, o oposto? Talvez não, talvez seja apenas o evoluir de dinâmicas que nos escaparam ao controlo. A nossa onda mudou mas o discurso antigo ficou. Espero que não cheguemos a mudar o hino para “De mãos dadas com os povos opressores...”. Eu sei, eu sei que estas coisas nunca se cantam assim...

Por falar em recordações, veio-me à memória as primeiras vezes que ouvi falar de terroristas e de terrorismo. Era eu ainda criança quando em Angola já se falava na luta contra o terrorismo e os terroristas. Nessa altura as autoridades coloniais portuguesas, e as escolas, onde muitos de nós fomos formados, utilizavam muito esta terminologia para referir os movimentos de libertação... vejo que essa forma de desqualificar quem luta pelos seus direitos é algo que continua. É facto que mesmo quem luta pelos seus direitos usa por vezes de violência contra alvos inadequados. Uma verdade um pouco incómoda. E, por isso, muitas vezes omitida.

Voltando a Gaza. Parece que a contagem já vai em cerca de mil mortos sendo perto de um terço crianças. A criança angolana perguntava-me se aqueles miúdos palestinos (e também os adultos), que estão a ser diariamente mortos, são todos terroristas, filhos de terroristas ou futuros terroristas. Serão os que bombardeiam com aviões e tanques de guerra meros defensores da ordem. Ou talvez pessoas que se estão a auto defender? É verdade que há civis israelitas que são vítimas de foguetes disparados a partir de Gaza.

Lá está a minha memória a incomodar-me... e a trazer recordações de quando vivia na cidade do Huambo, onde eramos vítimas de foguetes ou morteiros disparados dos arredores da cidade. Recordo-me perfeitamente de Jonas Savimbi ter sido recebido, nesse período, na Casa Branca como combatente da liberdade. Imaginam o líder do Hamas, força que foi já escrutinada em eleições, a ser recebido por Ronald Reagan? É claro que não. O Hamas é uma força classificada como terrorista. Como o Nelson Mandela.

Como já devem imaginar, as definições de terrorismo que encontrei não me foram muito úteis para dar uma resposta honesta e clara à criança que estava interessada em saber o que é terrorismo. Encontrei como definição que o terrorismo é o uso sistemático do terror (medo intenso?) para atingir objectivos políticos, religiosos ou outros. Encontrei referências a terrorismo de estado mas sinceramente que me pareceram muito confusas. Por exemplo, George Bush, apesar de ter sido reeleito na base de instigar o medo entre os seus concidadãos ou apesar de ter promovido ataques arrasadores contra vários países (incluindo as suas zonas urbanas), fez isto exatamente sob a bandeira da luta contra o terrorismo. E o lançamento de bombas atómicas sobre cidades, na segunda guerra mundial, também não é apresentado claramente como acção terrorista, apesar de ter visado essencialmente populações civis.

Tudo indica que o termo terrorista é uma etiqueta que por vezes se cola nos nossos opositores para retirar legitimidade às suas aspirações e às suas formas de luta. Quando a etiqueta cola bem, ela pode até ajudar no exercício de tiro ao alvo.

No meio das minhas dúvidas e hesitações lá consegui balbuciar para a criança que o importante é sermos realmente solidários com os povos oprimidos, como se canta nas escolas. E que é uma pena estarmos meio esquecidos de alguns valores que acabaram por ficar apenas nas letras do hino. Tentei convencer o miúdo que é útil entender que há uns que mudam de lado e passam de oprimidos ontem para opressores de hoje ou amanhã. Disse com convicção que descarregar a raiva nos filhos dos opressores, não é algo defensável, é imoral e até de utilidade duvidosa. Ao fazermos isso passamos a ser também opressores, pelo menos dessas crianças.

Mas, quando a criança me perguntou: “Então porque não vais para a rua, com os teus amigos, com cartazes a apoiar esses povos oprimidos no Zimbabwe, em Gaza, e noutros sítios, como se faz em tantas partes do mundo? Porque é que só consegues fazer isso quando Angola ganha no basquete ou no futebol?” gaguejei e olhei para baixo envergonhado. Não estou ainda seguro sobre como vencer esta vergonha, e fazer algo. Advinho que esta vergonha não é só minha.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Desengarrafator III

Um filme de ficção científica feito por nós? Poderia ser mais uma das nossas famosas lições ao mundo. Nem que fosse apenas uma lição de descaramento, como outras que temos dado...

Estou a pensar num guião com a história de um miúdo que tinha feito um carrinho de lata e que estava sempre a emaranhar a corda de puxar o carrinho nas cordas dos outros miúdos. Ele e os amigos não se entendiam pois não tinham descoberto o custo, para todos, da falta de colaboração e da falta de regras (ou do não cumprimento das existentes). Os miúdos cresceram – infelizmente continuando confusionistas - e as suas viaturas evoluíram também tornando-se sofisticadas e mais inteligentes. A relação entre humanos e estas máquinas começou a mudar quando elas começaram a conseguir comunicar. Primeiro era só para avisar os condutores que não tinham o cinto colocado, que as luzes estavam acesas depois de retirar a chave, e outras coisas do género. Mas depois começaram a comunicar também entre si, protestando contra os seus condutores. Isto começou em Luanda, é evidente...

Em Luanda, as viaturas mais evoluídas, depois de observarem o comportamento dos seus condutores, começaram a trocar opiniões, às escondidas, quando estavam estacionadas. Um guarda que sofria de insónia e guardava um parque de estacionamento (um desses espaços abusivamente privatizados) ouviu claramente os carros a comunicarem entre si. A insónia do guarda foi importante para desmascarar o plano das máquinas contra os humanos. Não fosse isso e ele teria dormido como tantos outros guardas, e não teríamos descoberto a conspiração.

O plano dos carrões era simples. Consideravam que na raíz dos engarrafamentos actuais está um passado onde os meninos pouco hábeis emaranhavam constantemente as cordas dos seus carrinhos. Por isso decidiram enviar ao passado uma série de carrões sofisticados para eliminar os referidos meninos. Iriam assim terminar com os engarrafamentos do presente. Daí o nome destas máquinas: desengarrafators.

O guarda ouviu claramento os argumentos que eles avançavam. “Estes indivíduos que nos conduzem parecem menos inteligentes do que nós. Já viram quando decidem bloquear a faixa oposta áquela em que estão a rodar?” dizia um. “Os imbecis não entendem que bloqueando o escoamento do trânsito no sentido oposto geralmente só agravam o problema da sua própria faixa”.

Um outro, cujo dono gostava de ouvir no carro umas boas kizombas, em altos berros, partilhou o seu espanto. “Nas farras destes humanos, quando estão todos a dançar, começa por parecer uma grande confusão mas, olhando com atenção, vê-se a harmonia e coordenação com que se desloca toda a multidão. São muitos, movem-se em pouco espaço, mas não se atropelam nem bloqueiam os movimentos uns aos outros.” O carrão suspirou “Adoro quando fazem aquelas pausas, a meio da dança, nas tarrachinhas. Gosto de ver toda aquela coordenação e sincronização. Parece mesmo algo de muito desenvolvido e faz-me lembrar os tempos em que eu estava na linha de montagem lá na fábrica. Não entendo como eles não conseguem aplicar esta habilidade e harmonia quando conduzem e quando se relacionam.”.

Outra viatura, mais bruta, um Hammer, respondeu com desdém. “Deixa-te lá de lirismos. Na farra a música toca aos berros impondo o ritmo e a regra que serve de base para a harmonia que vês. Os tipos ficam meios surdos e já não ouvem mais regra nenhuma. A lei e a moral não se fazem ouvir aos berros como a música das farras deles… E eles são completamente surdos ao que não se imponha pelo grito e cegos ao que não se exiba pelo tamanho, pelo brilho excessivo e ou pela cor berrante. A única solução para acabarmos com estes engarrafamentos é mandarmos uma máquina ao passado e eliminar aquele amor pela confusão”.

Não tenho espaço para vos explicar como o tal guarda contactou a ANA-Engarramento (Associação dos Naturais e Amigos do Engarrafamento) que decidiu mandar, também ao passado, um Hiace velho mas duro, para defender os meninos confusionistas e salvar assim a desordem do presente.

Falar de moralização e dar o exemplo

Reforçar a família e a escola, e tornar a sociedade menos corrupta e mais solidária, são, em poucas palavras as prioridades defendidas pelo Presidente da República no discurso de fim do ano. Realçou também que ambas as coisas exigem mudança de mentalidade na nossa sociedade. Uma mensagem simples e clara, e por isso apropriada para servir de fonte de inspiração para a acção.

A eficácia – para provocar mudança - deste tipo de mensagem é por vezes limitada pelo cepticismo de quem ouve. Cepticismo em relação à dificuldade da tarefa e em relação ao real compromisso com aquelas prioridades. Seja este cepticismo fundado ou não, a verdade é que a descrença causa, ela própria, bastante dano. A falta de confiança causa paralisia e retira parte da energia necessária para a acção. É importante reconhecer que a “evolução” que o país tem sofrido no domínio da corrupção, da desestruturação das famílias e da educação, tem criado um sistema e uma cultura que se tem vindo a enraizar e que, por isso, não será facilmente desmontado. Chamar a atenção para os problemas e definir metas é importante, mas é provavelmente limitado para reverter práticas – muitas vezes até “premiadas” - que se foram desenvolvendo ao longo de décadas. Mesmo tendo em mente todas as questões acima vale a pena levar a sério – e cobrarmos uns aos outros para que sejam praticadas – as palavras do nosso Presidente.

Vou aproveitar a deixa dada pelo discurso que venho vindo a referir, para defender a necessidade de analisarmos as raízes da corrupção e a forma como ela se mantém e propaga. Questionarmo-nos abertamente sobre o fenómeno e tentar entendê-lo, pode ser o primeiro passo para aumentarmos as nossas chances de sermos eficazes nesse empreendimento de mudar mentalidades.

Várias questões poderão ser exploradas. Por exemplo, será que a corrupção e a desestruturação das famílias tende a verificar-se igualmente em todas as classes ou é um problema dos níveis mais “elevados” da nossa sociedade? (“Elevação”, no sentido em que é usado aqui, refere-se apenas a riqueza material e poder, bem entendido). Já ouvi quem defenda que a crise moral nas sociedades é algo que está enraizado praticamente em todos. Os que defendem esta perspectiva, consideram que os que chegam ao topo não são menos morais do que os outros, são apenas mais hábeis a tirarem partido da imoralidade.

Seja qual for a resposta à questão, não há dúvidas que o comportamento dos ricos e poderosos, mesmo sendo criticado, serve de referência para muita gente. Ou seja, há um papel educativo (ou deseducativo...) no exemplo que os ricos e poderosos dão ao resto da sociedade. Por isso, eles possuem um real poder para provocar mudanças de mentalidade, através do seu exemplo. Poder que raramente usam de forma a moralizar.

Uma outra questão é, em que medida a pobreza e a privação são a raiz (ou, pelo menos, um factor importante) da corrupção e da dissolução familiar. É visível que há muita gente pobre que se esforça por ganhar a sua vida a trabalhar, de uma forma moral, e que se esforça por proteger a sua família. É também gritantemente visível que há muito rico que se apodera do que não é seu e que se comporta na família com a mesma atitude predadora que adopta na sociedade. Mesmo que seja verdade que a pobreza não gere, linearmente, imoralidade ou problemas na família, é evidente que levar uma vida de pobreza e ser, simultaneamente, constantemente exposto à riqueza exibicionista e acumulada pela via da esperteza, é susceptível de corromper. Parecem também evidentes os danos que causa à coesão familiar, a pobreza que, por exemplo, força as crianças a viverem na rua, sem acesso à atenção da família ou dos serviços de educação.

Deixo a sugestão que uma maneira de ajudarmos a concretizar a mudança de mentalidades referida pelo Presidente da República é (1) exigir um comportamento moral e exemplar, aos que estão em posições públicas, e servem por isso de modelo ao comportamento de outros, e (2) combater a pobreza retirando a pressão terrível que sofrem as famílias com menos posses e que acaba por se reflectir na sua coesão.

Membro do OPSA

sábado, 10 de janeiro de 2009

Reflexões Avulsas

Não é a proximidade que junta as pessoas, é a vontade.

Desde que o homem é homem que se questiona. Talvez seja esse exactamente o traço que o distingue dos outros animais. A dúvida leva à evolução, mas tem igualmente, em cada ponto de interrogação, o germe da infelicidade, do desconforto.

Das perguntas que me faço com mais frequência é a de qual é realmente o grande objectivo de quem tem que liderar uma comunidade, um País: trazer-lhe a satisfação material, ou a felicidade? Colocando a questão de uma forma mais objectiva e perceptível: quem vive uma vida mais satisfatória, o ‘empresário’ que acumulou riqueza material, tem dois 4x4, e três viaturas de mais ou menos luxo, que abarrotam o quintal da sua vivenda principal, num dos condomínios fortificados do Luanda-Sul, cinco filhos com necessidades variadas (há um que até tem o gosto pelo estudo, e fez um masters em Londres, outro gosta de fazer umas ravs pelas noites luandenses, e os outros ainda não cresceram o suficiente para definir as tendências), alimenta pelo menos mais uma família, neste afã de ser generoso, e, claro, vive preocupado com as formas de fazer crescer o negócio, pois parar é morrer, ou o chefe de família koi-san, que repete os rituais que os antepassados praticam há séculos, e se reúne com a comunidade todas as noites para uma boa história à volta da fogueira, partilhando os bens recolhidos ou caçados por todos, sem mais bens do que aqueles que consigo carrega, mas com olhos para ver o céu que, por aqueles lados, continua a ser estrelado, maravilhosamente estrelado? Ou, num exemplo talvez mais directo: há mais satisfação num lar cubano, em Cuba, com uma maior protecção social, solidariedade, e menos gadgets de última geração, ou num lar cubano em Miami, de um balsero acolhido na gigantesca roda americana?

Um dos paradoxos do nosso tempo é a constatação de que as sociedades quanto mais materialmente ricas são, mais problemas derivados da solidão e falta de solidariedade, enfrentam. Os assassinatos sem sentido, os suicídios, as vinganças, acabam por coroar vidas vazias, em que as pessoas vagam quais universos perdidos na escuridão dos dias.
Para muitos, tudo justifica os tais cinco minutos de fama. É claro que se puder ser mais do que cinco minutos, melhor.

Começamos a sentir, no nosso país, os efeitos dessa cultura de uma forma preocupante, diria mesmo, assustadora. Quando se escorraçam os pais, e se maltratam crianças inventando-se os mais variados pretextos. Quando a porta está aberta para qualquer charlatão nos comprar a alma em troca dos mais variados dízimos, prometendo a conquista do bem estar com a intervenção directa do altíssimo, algo está mal. O olho gordo do vizinho incomoda, e, a comunidade deixa de ser um refúgio, para ser uma ameaça. O que se valoriza é o que se tem, e não o que se faz.

A ênfase nos valores morais do discurso de Sua Excelência o Presidente da República, não poderia ser mais apropriada. Mas sou apologista dos pequenos gestos. Ainda que se possa procurar menosprezar um acto vindo de um país que encarna a cultura do imediatismo, o recente cartão amarelo mostrado aos responsáveis da indústria automobilística americana, que foram solicitar aos órgãos de decisão do seu país uma ajuda de muitos milhares de milhões de dólares, para salvar as suas empresas, mas não prescindiram dos seus jactos particulares, não deixou de ser uma interessante fábula. Digna de Esopo.

Para que possa ter impacto, não basta pregar a moral, é preciso praticá-la.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Frontalidade? Talvez sob o efeito do álcool…

A bebedeira soltou-lhe a língua e o espírito. Acabámos por ouvi-lo exprimir ideias interessantes, embora um pouco cruas. Presenciámos a uma frontalidade a que não estávamos habituados. Algumas daquelas ideias estavam até em embrião em muitos de nós mas, as várias inibições, interesses e o sentido de auto-preservação, sempre nos levaram a calá-las dentro de nós. Mais do que calá-las, abafávamos até o seu desenvolvimento.

O tipo não tinha sequer bebido tanto que se lhe enrolasse a língua, nem nós estávamos tão próximos que lhe conseguíssemos sentir o hálito. Foi a expressão livre e corajosamente frontal, descuidada até, que nos levou a pensar que havia ali álcool. Mas, foi agradável ouvi-lo. Aquele sentido de liberdade que se podia sentir na forma como se exprimia chegava a ser invejável. Era invejável especialmente naquele nosso ambiente onde todos pesavam constantemente o que dizer, como dizer, onde dizer, a quem dizer, calculando riscos, benefícios e custos, actuais e futuros. Um ambiente onde se seguia a regra de só dizer algo crítico para destruir ou enfraquecer um “inimigo” ou “competidor”. Tal regra não foi escrita nem afirmada em lado nenhum - mas cumprida com mais rigor do que muita lei escrita e aprovada pelas instituições apropriadas. Tal regra parecia ter até cláusulas como: o que for feito ou dito pelos inimigos ou competidores deve ser deturpado para lhe dar uma conotação negativa. E, também: as suas realizações devem ser transformadas em erros. Outra cláusula: se for amigo ou aliado, devemos ignorar as suas fraquezas (pelo menos não falar delas) ou então apresentá-las como virtudes. Assim, o amigo / aliado, poderá vir a retribuir o favor e, quando alguns dos nossos disparates ficarem visíveis, sempre teremos quem nos defenda. Não que defenda a justiça, mas que nos defenda a nós.

Naquele ambiente, mesmo no confronto de ideias, seguiam-se tácticas militares. Em particular as de guerrilha: atacar, fugir, e voltar a atacar noutro local. Nunca procurar um engajamento franco de troca de ideias. Compreensível, se considerarmos que o jogo não era, naquele ambiente, de trocar ideias, comunicar ou procurar a verdade. Tratava-se mais de destruir ou enfraquecer o inimigo, conquistar espaço e influência, e para isso mobilizar e apoiar aliados (e doadores?). Conquistar espaço, notoriedade (num certo tipo de mercado?). E quem seriam os inimigos? Fácil! Todos os que pensavam de forma diferente. Tentar entender o pensamento dos outros exige tempo (para escutar, para reflectir, para questionar com honestidade), e tempo é algo que não temos. Por questão de segurança, neste ambiente colocavam-se estes, que não entendíamos, na lista dos inimigos. É evidente que eram também inimigos aqueles que poderiam ser vistos como potenciais competidores pelo espaço que pensávamos ocupar, de preferência em regime de exclusividade. Naquele ambiente intelectualmente estreito, ter monopólio do discurso era considerado uma vantagem. Alguns chamaram-lhe complexo de Tarzan: a necessidade de nos sentirmos o único indivíduo (ou organização) pensante no meio duma multidão de macacos.

O discurso daquele indivíduo, etilicamente esclarecido e libertado, prendeu a atenção de todos nós. Apesar de não dizer grandes novidades – pois muito do que ele dizia em voz alta já muitos de nós sussuravam há algum tempo -, era uma estimulante novidade vê-lo solto das regras, compromissos, alianças e tácticas que tão tristemente nos limitavam. O álcool aproximou-o da verdade e deu-lhe limpidez ao discurso e ao raciocínio.

Voltei a encontrá-lo, no dia seguinte, quando ele recordava, incomodado, os excessos de bebida e de coragem, no dia anterior. Estava fisicamente indisposto e arrependido das verdades que tinha dito. Sentia que estava agora exposto (socialmente e ao nível do fígado) e que isso poderia ter alguns custos (na sociedade e na clínica). Eu lá tentei animá-lo e encorajei-o a sonhar com o dia em que iremos saborear a liberdade de nos exprimirmos com frontalidade e segurança sem os efeitos colaterais de para isso termos de recorrer aos “preciosos líquidos” que nos deixam etilizados e soltos. Concordámos que acelerar a criação desse ambiente, pelo menos na sociedade civil, não seria nada mau.

Combinámos então que ambos tentaríamos, numa primeira etapa, conquistar para o nosso sonho a Livia França da AJPD e o Luiz Araújo, da secção da SOS Habitat no exílio… A primeira, para dedicar mais tempo a ouvir atentamente, e sem preconceito, e debater ideias com aqueles de quem discorda (debater com quem concordamos é um pouco aborrecido, não?). Ao segundo para procurar as nuances que o mundo sempre oferece: para além da cor branca e da cor preta, é bom não ignorarmos a infinidade de cinzentos. Já para não falar de todas as outras cores. Ver todas elas torna o mundo mais complicado mas talvez também mais rico e com menos inimigos para combater. Até porque esses “inimigos” podem não passar do equivalente aos moinhos de vento que D.Quixote tanto, e ingloriamente, combatia. Começar por eles seria também uma forma de demonstrar reconhecimento, sincero, por me terem inspirado a escrever este texto.

Liderar ou mandar?

Algo que observo frequentemente entre nós é a tendência para minar a liderança. Creio notar toda uma série de técnicas usadas vulgarmente para fazer isto. Como resultado criam-se condições para apenas “sobreviverem” as lideranças que associem duas características (da valor duvidoso...): (1) querer mandar e (2) ser capaz de se impor pela “força”. Lideranças com um estilo mais de facilitador / visionário, dificilmente sobrevivem se não possuírem as duas características que refiro acima. Porquê?

• Falta-nos auto disciplina. Dito de outra forma, seguimos pouco a princípios e mais à autoridade. Dito ainda de outra forma, para cumprirmos uma regra é necessário que esteja por perto uma “autoridade” a quem nos devemos subjugar. Se a autoridade não estiver, ou se não se souber impor, temos a tendência para abandalhar o cumprimento da tal regra (mesmo que compreendamos a sua razão de ser)
• Temos dificuldade de olhar para a liderança como um serviço ao grupo. Um serviço que ajuda o grupo dando-lhe coesão e direcção e, por isso, eficácia. Temos mais tendência para olhar para a liderança como uma espécie de prémio para quem se conseguiu guindar ao topo. Um prémio por ser o mais rico, o mais autoritário, o mais velho, o mais forte fisicamente, etc.
• Das características acima resulta que o líder define as regras de cujo cumprimento deve ser dispensado e os privilégios especiais de que deve beneficiar. Ter privilégios e estar acima das regras é algo que não choca ninguém uma vez que o líder está na posição mais de vencedor de uma competição do que na de alguém a prestar um serviço ao grupo, escolhido pelo grupo pelo seu mérito e capacidade para prestar o referido serviço.

Porque esta forma de encarar o que é liderança é algo partilhado por demasiados de nós, é natural que regularmente o líder tenha de “colocar no lugar” os possíveis competidores, ou apenas os que quiserem testar a firmeza de quem manda. É também natural que regularmente os mais atrevidos do grupo façam algumas tentativas para “abandalhar”, apenas para testar as suas chances de se tornarem alternativas, ou apenas para testar a solidez de quem está naquela posição. Ou ainda apenas para criar um pouco de confusão e, no meio desta, aumentar as possibilidades de retirar algum benefício de um ambiente desestruturado.

O que me parece apaixonante é encontrar estes tiques (nos grupos e nos líderes) a manifestarem-se tanto em ambientes onde está em jogo um poder considerável como em ambientes onde se lida com um podersinho minúsculo. Recordo-me de me terem contado sobre um ministro do GURN ter chamado um seu vice-ministro que estava a ficar demasiado visível, para lhe perguntar, com maus modos, se ele sabia quem mandava. Em pequenos grupos de que faço creio observar constantemente este tipo de dinâmica.

Resisto a acreditar que seja inevitável que o exercício da liderança tenha obrigatoriamente de seguir esta lógica. Creio até já ter visto, directamente, grupos a funcionar segundo a tal lógica da liderança como uma função ao serviço do grupo. A lógica do líder como um vencedor parece-me mais o resultado de um certo “primitivismo” e imaturidade na forma de nos relacionarmos com o poder.

De onde virá isto? Embora não seja propriamente um especialista eu colocaria algumas possibilidades.
• Desde crianças que vamos sendo condicionados a vergar-nos mais à força do que à razão. Atrever-me-ia a dizer que na infância de muitos de nós foram comuns as situações onde o menino mais forte, fisicamente, é colocado a tomar conta dos outros. Ou, ainda, as situações onde os conselhos eram complementados com ameaças, ou mesmo uns tabefes. Ou colocar como razão para impor algo, o simples argumento de recordar quem manda.
• Desde criança que não estimulam em nós a capacidade de assumir as funções de liderança. Quando muito somos ensinados que devemos conquistar espaço pelo pulso. Condicionam-nos assim a entender que o mérito de liderar é essencialmente o de ser capaz de conquistar as coisas a pulso.

Será possível ser diferente? Acredito que sim. Creio já ter observado momentos, raros, de liderança realmente partilhada e de elementos de um grupo a reforçarem a liderança de cada um dos membros desse grupo. Para tornar isso mais comum é necessário que se cultive em cada um de nós a capacidade de lidar com as ansiedades e as necessidades das funções de liderança. É necessário que o grupo desenvolva a capacidade de apoiar os líderes com mérito (estou a falar de outros méritos para além do de ter capacidade de consolidar o seu poder) e de lhes retirar o tapete no caso de eles mostrarem estar demasiado afeiçoados ao gosto por mandar e aos benefícios que retiram dessa posição. Necessitamos de grupos que contribuam para que cada um desenvolva autoconfiança e algumas habilidades como a capacidade de estruturar o trabalho em grupo ou a de comunicar de forma clara com um grupo. Isto exige um esforço consciente para mudar uma cultura que está profundamente enraizada em nós. Basta olhar para os estilos de liderança que, aos vários níveis, acabam geralmente por se afirmar entre nós.

Constituição à mesa

Prestar atenção à conversa na mesa ou fila do lado, na sala de espera, restaurante, ou meio de transporte, não deve ser novidade para ninguém. As conversas que não nos dizem respeito despertam mais atenção, mas esta que escutei, e sobre a qual vos quero falar, não é propriamente sobre um assunto que não me diga respeito. Era sobre a constituição, e sobre a forma de eleição do presidente … Mesmo não sendo nem um doutor em leis (constitucionais ou outras), nem candidato ao posto, acredito que o assunto também me diz respeito.

Já vi defender o princípio de deixar estas discussões para os juristas e para os políticos por serem eles os especialistas no assunto. Creio já ter descoberto, desde há muito tempo, que em qualquer discussão ou negociação, o conhecimento joga um papel, mas os interesses jogam muitas vezes um papel ainda maior. Os peritos, como todos os outros, podem perfeitamente colocar o seu conhecimento ao serviço de interesses. O que não tem nada de errado, desde que exista a possibilidade de os negociar.

Mas voltemos à discussão que bisbilhotei, e perdoem-me se a minha transcrição não fôr muito fiel. Não tomei notas, nem tinha um gravador, e aquilo que retive tem que ver com o meu entendimento, limitado, destes assuntos. Simplificando o que ouvi para não vos maçar, havia naquela conversa um que valorizava a lei, e lhe dava importância, e um outro que tinha uma posição mais “pragmática”. Para quê perder tempo a discutir a constituição de forma ampla? Para quê perder tempo e dinheiro com isso? Dizia este último. O argumento era que a lei fica essencialmente nos papéis e acaba por ter um peso mínimo nos nossos assuntos do dia-a-dia. Para além, dizia ele, de já termos muitas leis, regulamentos, e tratados internacionais assinados por Angola, e cujo cumprimento é relativamente débil. Porque não investir mais no cumprimento destas?

O outro, embora reconhecesse o problema do pouco respeito pela lei, defendia que uma das razões por detrás desse problema é ser raro o envolvimento dos cidadãos na discussão das leis quando elas estão a ser preparadas. A discussão ampla dos princípios e das implicações de uma ou outra formulação deveria envolver todos. E defendia que quando não se participa, é mais fácil não se conhecer, e criam-se as condições para não se aplicar na prática as leis que são aprovadas. Por isso, dizia ele, é necessário fazer perceber que a discussão da constituição pode ser importante para todos nós. Muitas vezes esquecemo-nos que as regras (leis, tratados ou outros) servem para limitar o poder dos poderosos. Mesmo que os poderosos saibam tirar melhor partido das leis existentes, mesmo que eles sejam mais influentes no momento de criar a lei ou a regra, a ausência de regra ou de lei prejudica mais os mais fracos. A ausência de lei tem um nome: lei do mais forte.

O pragmático não se deixou convencer. Para ele a nossa sociedade prefere mesmo funcionar sem muitas regras, pois todos sonhamos que no meio da confusão podemos retirar um benefício superior ao que o direito e o mérito nos dariam. É o Luanda dá Sorte, mas aplicado a tudo e a toda a sociedade... Em vez de trabalhares, acumular riqueza que produzes e poderes prever o que vais obter, não é melhor tentares a sorte, no meio da confusão das bolas a girar, e esperar por um prémio desproporcionadamente grande se comparado com o esforço que colocaste na compra do bilhete? Porquê esperar o resultado do mérito? Não vês que a esperteza pode dar-te resultados bem mais espectaculares que esses do mérito?

Estava com uma enorme vontade de entrar na conversa e de atirar com o argumento do custo que tem para todos (e portanto para cada um) estar sempre a funcionar numa lógica de totoloto - no trânsito, na política, no emprego... Mas os tipos já estavam a ficar exaltados e meio agressivos, e o “pragmático” era bem constituído e bem mais forte do que eu e o outro tipo juntos. Preferi não testar se naquele caso se aplicaria ou não a lei do mais forte… e continuei calado a bisbilhotar, disfarçando o meu interesse.

A conversa ainda ficou mais tensa quando um deles trouxe para a discussão a forma de eleição do Presidente da República. Mas isto é assunto para o próximo artigo, para além de ser apenas um dos muitos assuntos importantes a serem definidos numa nova constituição.

O que é certo é que saí frustrado por não ter tido a possibilidade de dar a minha opinião. Tal como disse um deles, acredito que participar é o primeiro passo para dar a possibilidade destas regras e ideais de justiça saírem do papel e tomarem conta da sociedade.