quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Coordenação, Legitimidade e Representatividade nas OSC

O Quê?
O que tenho a dizer está estruturado em quatro partes:
(1) Alguns conceitos. Não propriamente definições ou uma abordagem teórica. Apenas uma introdução sobre o sentido que dou a alguns dos termos.
(2) Realço alguns elementos do nosso ponto de partida. Qual é a nossa realidade actual nestas questões de coordenação, representatividade e legitimidade.
(3) Identifico alguns desafios que me parecem comuns, e preocupantes.
(4) Sugiro sobre possíveis mecanismos para melhorar a coordenação e a criação de estruturas representativas e legítimas, e, por isso, mais eficazes

O significado que dou a algumas destas palavras
Legitimidade é algo relativo. Ninguém tem legitimidade em relação a tudo nem em todos os momentos. A legitimidade pode ser dada pelo quadro legal, por aspectos culturais (por exemplo, muitas vezes considera-se que um mais velho tem mais legitimidade para se pronunciar sobre determinado assunto do que um jovem). Há pois toda uma série de regras na sociedade, que conferem, ou retiram, legitimidade a alguém ou a um grupo, para fazer ou dizer algo. Eu posso ter legimidade para falar como representante de um grupo se esse grupo me tiver dado um mandato para isso. O conhecimento, a experiência, o reconhecimento público, o ter recebido um mandato de alguém, são tudo possíveis fontes de legitimidade. Vamos ver, mais à frente, que temos por vezes problemas com isto, na prática.

Representatividade? Porquê recorrer a mecanismos de representação? Porque o exercício directo dos nossos direitos é, por vezes, difícil. É difícil que todos nós possamos participar em todas as discussões que nos dizem respeito. Uma possível solução é escolhermos alguém que nos represente. A representação permite-nos assim participar de forma indirecta. Participar por interposta pessoa ou organização.

Coordenação? Demasiadas vezes, e erradamente, associada com chefiar e mandar. Infelizmente não se dá suficiente atenção às funções que permitem coordenar: a troca de informação e o concertar da tomada de decisões. Tornar a acção de um conjunto de indivíduos ou de um conjunto de organizações em algo harmonioso, consertado e com um propósito comum.

Sociedade Civil? Não um sector ou um conjunto de organizações. É mais um espaço onde vários tipos de organização se movimentam e vários tipos de interesses se negoceiam. É comum que o Estado (entre nós, em Angola, e noutras paragens) também use actores para agirem no espaço da sociedade civil. Este espaço de negociação é claramente diferente do espaço do Estado ou do mercado.

Como estamos em termos de coordenação, legitimidade e representatividade nas OSC
Temos plataformas que são tratadas como representando outros. Temos, por exemplo, a UNACA (União Nacional das Cooperativas de Angola, creio), uma organização que se apresenta como representando as cooperativas de Angola e, outro exemplo, o FONGA (Forum das Organizações Não Governamentais Angolanas) que se apresenta como representando as ONGs Angolanas. Ambas são tratadas pelos doadores, pelo Estado e por muitos de nós, como representando as cooperativas e as ONGs, respectivamente. Mas, não existem processos activos para garantir que estas organizações de organizações sejam realmente legítimas para a função que dizem ter (entre outras, representar aqueles “sectores”) – são apenas dois exemplos mas poderíamos dar outros. Não se exige sequer que se mantenham os mecanismos para garantir a representatividade dos seus diferentes orgãos. Não há portanto a preocupação que quando estas falam em nome das cooperativas ou das ONGs (mantendo o exemplo), isto resulte de um mandato que lhes tenha sido dado por aqueles conjuntos de organizações (cooperativas e ONGs).

Nós (cidadãos e organizações), raramente nos damos ao trabalho de exigir que nos espaços da sociedade civil onde se negoceia com outros "sectores" (Estado, doadores, privados), estejam indivíduos que representam realmente as organizações da sociedade civil. Por exemplo, os Conselhos de Auscultação e Consertação Social (comunais, municipais ou provinciais), reservam lugares para representantes da sociedade civil. Quem escolhe esses representantes? Normalmente deveriam ser os que são representados a fazer a escolha. Viria daí a representatividade. Mas, muitas vezes, permitimos que a escolha seja feita sem o nosso envolvimento – por passividade, por medo, por falta de tempo que gera um determinado tipo de passividade. Acontece haver "representantes" que se escolhem a si próprios ou serem escolhidos por aqueles com quem negociarão... Raramente exigimos participar no controlo da escolha dessas pessoas que nos representarão e ainda mais raro é controlarmos as posições que eles defenderão ou que resultou dos espaços onde participaram.

Temos também dificuldade em exercer funções de coordenação (na lógica referida acima de troca de informação e facilitação de tomada de decisões). Raramente cooperamos com a função de coordenação. Por exemplo, estando alguém no papel de circular informação, encaminharmos para ela informação e facilitando assim que esta chegue a um grupo alargado. É comum consideramos que o coordenador deve ser o chefe. E, ou o chefe se impõe e obriga cada um a submeter-se à sua autoridade ou não colaboramos com as funções que permitem coordenar a acção conjunta. O que normalmente resulta em cada um puxar para o seu lado. Neste aspecto temos até dificuldade em discutir de forma frontal, sistmática e produtiva, as nossas ideias. Por exemplo, o secretariado do FONGA achou por bem não estar presente na II Conferência da Sociedade Civil e tem regularmente evitado a discussão sobre coordenação com legitimidade e representatividade. Nós aqui na conferência não estamos seguramente de acordo em tudo. Provavelmente estaremos de acordo em algumas coisas. Ou, alguns grupos podem estar de acordo em algumas coisas e em desacordo noutras. A composição destes grupos em torno de um determinado acordo seguramente que muda consoante o tema. Estar presente em espaços, mesmo discordando de muitos dos presentes, é algo a que temos de nos habituar. Ir à luta para defender a nossa perspectiva - sem considerar que os outros são inimigos (ou possuem uma agenda escondida) - é algo que deveria fazer parte da imagem de marca da sociedade civil. Esta cultura é algo que estamos de construir. Este tipo de debate poderá contribui para uma tal construção.

Desafios profundos
Para além do que dissemos acima é também raro que os representantes prestem contas àqueles que representam. Aqueles de onde lhes vem o mandato. Mesmo nas nossas ONGs, embora seja comum termos assembleias de membros ou de associados, é mais comum que a prestação de contas seja feita aos doadores e à UTCAH (Unidade Técnica de Coordenação das Ajudas Humanitárias). Prestam-se contas a quem se entende como tendo poder... Esta cultura parece ser partilhada tanto pela classe política como pela sociedade civil.

Acontece também que após, elegermos alguém, ao longo do exercício do seu mandato os eleitos evoluam para chefes e deixem de necessitar de renovar os seus mandatos. A sua legitimidade passa a vir do seu estatuto de chefes e da sua afirmação como tal. Quer dizer, levantam voo e deixam-nos em terra. Isto poderá estar ligado a um aspecto da nossa cultura política: a preferência por estruturas hierárquicas e autoritárias em vez de estruturas em rede e horizontais. O líder que tente exercer uma função de partilha, facilitação e mobilização de esforços conjuntos tende a ser aquilo que nós chamamos de “abandalhado”. O líder que não for capaz de dar uns murros na mesa, uns bafos e conquistar o seu poder, é visto como um “boélo” que não devia sequer estar naquela posição. Este tipo de cultura, raramente assumida e várias vezes disfarçada por detrás de um discurso de participação e cidadania cria um desafio real à construção de mecanismos de coordenação legitimados e controlados pelo grupo, na base de mandatos claros e limitados, e na representatividade das estruturas.

Surge a pergunta: será que para sermos eficazes devemos, por enquanto, continuar a permitir estes estilos autoritários e hierarquizados e progressivamente irmos desenvolvendo uma cultura diferente? Será que uma lógica em rede, participativa e igualitária, apenas produzirá uma enorme frustração por não chegarmos a lado nenhum e gastarmos toda a energia a lutarmos individualmente por um espaço de afirmação? Parece um desafio central para a sociedade civil angolana (e para a sociedade angolana, no geral). Colocando de uma forma mais crua o dilema é: vamos praticar mais o que defendemos verbalmente ou vamos ter mais preocupação com a eficácia, arriscando algumas concessões em relação à participação e legitimidade? Continuaremos a permitir que os tais líderes autoritários desempenhem o seu papel? Serão eles necessários para que as coisas aconteçam?

Possíveis pistas para melhor coordenação
Sem estruturas fortes e que possam representar o conjunto de interesses e visões da sociedade, teremos dificuldades em sermos ouvidos e sermos eficazes. Sermos ouvidos, e, também, sermos exigentes com o nosso próprio "sector" (auto-regulação), com o governo e com os doadores. Prestarmos contas, mas sermos também competentes a pedir contas, através de estruturas fortes, representativas e legítimas. Um dos princípios de funcionamento de tais estruturas deve ser a renovação dos mandatos dos líderes. Não deixar que ninguém cristalize na liderança.

Um outro princípio é exigir que estas lideranças prestem contas, regularmente, aos membros das suas organizações e às plataformas de organizações. Isto deve ser-lhes exigido, e quando não devidamente cumprido deve ter-se a coragem de retirar o mandato de uns líderes e atribuí-lo a outros. Praticar este jogo nas nossas organizações da sociedade civil é fundamental para o desenvolvimento de uma cultura política mais democrática e realmente assente na participação e cidadania.

Outro princípio fundamental é o de facilitar o acesso à informação. As pessoas nas várias aldeias, das várias partes do país, devem ter acesso a informação sobre o que está a ser discutido e o que está a ser negociado. Isso é a base para poderem desenvolver uma opinião e exigir das suas estruturas (associativas, políticas, ou outras) que cumpram com mandato que lhes for dado. É pois necessário garantir que a informação circule nos dois sentidos. Para além de serem informadas as pessoas devem ter a possibilidade de ser ouvidas e as suas opiniões devem influenciar os espaços onde as decisões são negociadas e tomadas.

Possíveis critérios para construir estruturas nessa lógica poderiam incluir: (1) o critério geográfico – garantir que as pessoas de todo o território tenham uma chance de participar e (2) o critério temático – garantir que os que trabalhem ou se interessem pelos diferentes temas (criança, HIV-SIDA, segurança alimentar, direitos humanos, etc) tenham a possibilidade de fazer ouvir as suas experiências, soluções e prioridades. Como cruzar estes dois critérios? Como garantir que as nossas plataformas e mecanismos de auscultação e concertação, tenham esta representatividade e abrangência?

Mas, em todas estas estruturas, mecanismos ou processos, estará sempre presente o dilema já referido: que equilíbrio entre a lógica do funcionamento em rede – onde não há hierarquia e onde pode existir um vazio de liderança - e um funcionamento na base de lideranças que empurrem e façam as coisas acontecer? Que equilibrio entre a lógica de rede e a lógica hierárquica?

2 comentários:

Victor Fontes disse...

A aceitação do 'ditador' tem a haver não só com a falta de cultura democrática, mas essencialmente com o comodismo. Dá realmente menos trabalho... Algo que não me parece correcto é sequer conotar o 'fazer acontecer' com o estilo ditatorial. É realmente mais difícil colocar as organizações a andar com uma maior cultura participativa, mas é possível e necessário.

Carlos Figueiredo disse...

Por outro lado parece-me que se queremos realçar o lado negativo de uma determinado tipo de atitude, utilizamos palavras como "ditatorial" e "autoritária". Se, pelo contrário, queremos realçar o lado negativo já usamos termos como "liderança",
"capacidade de decisão".