As perguntas das crianças são muitas vezes estimulantes pela perspectiva límpida, quase que não afectada por preconceitos ou interesses estreitos. Estou ainda a pensar nas perguntas que ouvi de uma criança sobre o que é terrorismo e sobre o que se está a passar em Gaza.
Essas reflexões misturaram-se com a recordação de quando, até há bem pouco tempo, trabalhava mesmo ao lado de uma escola primária e escutava todas as manhãs a criançada a cantar o hino: “Solidários com os povos oprimidos...”. Palavras redigidas quando a nossa onda era outra. Fico sempre um pouco entristecido ao ouvir as crianças a falarem como papagaios. Fico com medo que estejam a ser preparadas para dizerem uma coisa e fazerem, e tolerarem, o oposto? Talvez não, talvez seja apenas o evoluir de dinâmicas que nos escaparam ao controlo. A nossa onda mudou mas o discurso antigo ficou. Espero que não cheguemos a mudar o hino para “De mãos dadas com os povos opressores...”. Eu sei, eu sei que estas coisas nunca se cantam assim...
Por falar em recordações, veio-me à memória as primeiras vezes que ouvi falar de terroristas e de terrorismo. Era eu ainda criança quando em Angola já se falava na luta contra o terrorismo e os terroristas. Nessa altura as autoridades coloniais portuguesas, e as escolas, onde muitos de nós fomos formados, utilizavam muito esta terminologia para referir os movimentos de libertação... vejo que essa forma de desqualificar quem luta pelos seus direitos é algo que continua. É facto que mesmo quem luta pelos seus direitos usa por vezes de violência contra alvos inadequados. Uma verdade um pouco incómoda. E, por isso, muitas vezes omitida.
Voltando a Gaza. Parece que a contagem já vai em cerca de mil mortos sendo perto de um terço crianças. A criança angolana perguntava-me se aqueles miúdos palestinos (e também os adultos), que estão a ser diariamente mortos, são todos terroristas, filhos de terroristas ou futuros terroristas. Serão os que bombardeiam com aviões e tanques de guerra meros defensores da ordem. Ou talvez pessoas que se estão a auto defender? É verdade que há civis israelitas que são vítimas de foguetes disparados a partir de Gaza.
Lá está a minha memória a incomodar-me... e a trazer recordações de quando vivia na cidade do Huambo, onde eramos vítimas de foguetes ou morteiros disparados dos arredores da cidade. Recordo-me perfeitamente de Jonas Savimbi ter sido recebido, nesse período, na Casa Branca como combatente da liberdade. Imaginam o líder do Hamas, força que foi já escrutinada em eleições, a ser recebido por Ronald Reagan? É claro que não. O Hamas é uma força classificada como terrorista. Como o Nelson Mandela.
Como já devem imaginar, as definições de terrorismo que encontrei não me foram muito úteis para dar uma resposta honesta e clara à criança que estava interessada em saber o que é terrorismo. Encontrei como definição que o terrorismo é o uso sistemático do terror (medo intenso?) para atingir objectivos políticos, religiosos ou outros. Encontrei referências a terrorismo de estado mas sinceramente que me pareceram muito confusas. Por exemplo, George Bush, apesar de ter sido reeleito na base de instigar o medo entre os seus concidadãos ou apesar de ter promovido ataques arrasadores contra vários países (incluindo as suas zonas urbanas), fez isto exatamente sob a bandeira da luta contra o terrorismo. E o lançamento de bombas atómicas sobre cidades, na segunda guerra mundial, também não é apresentado claramente como acção terrorista, apesar de ter visado essencialmente populações civis.
Tudo indica que o termo terrorista é uma etiqueta que por vezes se cola nos nossos opositores para retirar legitimidade às suas aspirações e às suas formas de luta. Quando a etiqueta cola bem, ela pode até ajudar no exercício de tiro ao alvo.
No meio das minhas dúvidas e hesitações lá consegui balbuciar para a criança que o importante é sermos realmente solidários com os povos oprimidos, como se canta nas escolas. E que é uma pena estarmos meio esquecidos de alguns valores que acabaram por ficar apenas nas letras do hino. Tentei convencer o miúdo que é útil entender que há uns que mudam de lado e passam de oprimidos ontem para opressores de hoje ou amanhã. Disse com convicção que descarregar a raiva nos filhos dos opressores, não é algo defensável, é imoral e até de utilidade duvidosa. Ao fazermos isso passamos a ser também opressores, pelo menos dessas crianças.
Mas, quando a criança me perguntou: “Então porque não vais para a rua, com os teus amigos, com cartazes a apoiar esses povos oprimidos no Zimbabwe, em Gaza, e noutros sítios, como se faz em tantas partes do mundo? Porque é que só consegues fazer isso quando Angola ganha no basquete ou no futebol?” gaguejei e olhei para baixo envergonhado. Não estou ainda seguro sobre como vencer esta vergonha, e fazer algo. Advinho que esta vergonha não é só minha.
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