sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Solidários com os povos oprimidos? Ou com os opressores?

As perguntas das crianças são muitas vezes estimulantes pela perspectiva límpida, quase que não afectada por preconceitos ou interesses estreitos. Estou ainda a pensar nas perguntas que ouvi de uma criança sobre o que é terrorismo e sobre o que se está a passar em Gaza.

Essas reflexões misturaram-se com a recordação de quando, até há bem pouco tempo, trabalhava mesmo ao lado de uma escola primária e escutava todas as manhãs a criançada a cantar o hino: “Solidários com os povos oprimidos...”. Palavras redigidas quando a nossa onda era outra. Fico sempre um pouco entristecido ao ouvir as crianças a falarem como papagaios. Fico com medo que estejam a ser preparadas para dizerem uma coisa e fazerem, e tolerarem, o oposto? Talvez não, talvez seja apenas o evoluir de dinâmicas que nos escaparam ao controlo. A nossa onda mudou mas o discurso antigo ficou. Espero que não cheguemos a mudar o hino para “De mãos dadas com os povos opressores...”. Eu sei, eu sei que estas coisas nunca se cantam assim...

Por falar em recordações, veio-me à memória as primeiras vezes que ouvi falar de terroristas e de terrorismo. Era eu ainda criança quando em Angola já se falava na luta contra o terrorismo e os terroristas. Nessa altura as autoridades coloniais portuguesas, e as escolas, onde muitos de nós fomos formados, utilizavam muito esta terminologia para referir os movimentos de libertação... vejo que essa forma de desqualificar quem luta pelos seus direitos é algo que continua. É facto que mesmo quem luta pelos seus direitos usa por vezes de violência contra alvos inadequados. Uma verdade um pouco incómoda. E, por isso, muitas vezes omitida.

Voltando a Gaza. Parece que a contagem já vai em cerca de mil mortos sendo perto de um terço crianças. A criança angolana perguntava-me se aqueles miúdos palestinos (e também os adultos), que estão a ser diariamente mortos, são todos terroristas, filhos de terroristas ou futuros terroristas. Serão os que bombardeiam com aviões e tanques de guerra meros defensores da ordem. Ou talvez pessoas que se estão a auto defender? É verdade que há civis israelitas que são vítimas de foguetes disparados a partir de Gaza.

Lá está a minha memória a incomodar-me... e a trazer recordações de quando vivia na cidade do Huambo, onde eramos vítimas de foguetes ou morteiros disparados dos arredores da cidade. Recordo-me perfeitamente de Jonas Savimbi ter sido recebido, nesse período, na Casa Branca como combatente da liberdade. Imaginam o líder do Hamas, força que foi já escrutinada em eleições, a ser recebido por Ronald Reagan? É claro que não. O Hamas é uma força classificada como terrorista. Como o Nelson Mandela.

Como já devem imaginar, as definições de terrorismo que encontrei não me foram muito úteis para dar uma resposta honesta e clara à criança que estava interessada em saber o que é terrorismo. Encontrei como definição que o terrorismo é o uso sistemático do terror (medo intenso?) para atingir objectivos políticos, religiosos ou outros. Encontrei referências a terrorismo de estado mas sinceramente que me pareceram muito confusas. Por exemplo, George Bush, apesar de ter sido reeleito na base de instigar o medo entre os seus concidadãos ou apesar de ter promovido ataques arrasadores contra vários países (incluindo as suas zonas urbanas), fez isto exatamente sob a bandeira da luta contra o terrorismo. E o lançamento de bombas atómicas sobre cidades, na segunda guerra mundial, também não é apresentado claramente como acção terrorista, apesar de ter visado essencialmente populações civis.

Tudo indica que o termo terrorista é uma etiqueta que por vezes se cola nos nossos opositores para retirar legitimidade às suas aspirações e às suas formas de luta. Quando a etiqueta cola bem, ela pode até ajudar no exercício de tiro ao alvo.

No meio das minhas dúvidas e hesitações lá consegui balbuciar para a criança que o importante é sermos realmente solidários com os povos oprimidos, como se canta nas escolas. E que é uma pena estarmos meio esquecidos de alguns valores que acabaram por ficar apenas nas letras do hino. Tentei convencer o miúdo que é útil entender que há uns que mudam de lado e passam de oprimidos ontem para opressores de hoje ou amanhã. Disse com convicção que descarregar a raiva nos filhos dos opressores, não é algo defensável, é imoral e até de utilidade duvidosa. Ao fazermos isso passamos a ser também opressores, pelo menos dessas crianças.

Mas, quando a criança me perguntou: “Então porque não vais para a rua, com os teus amigos, com cartazes a apoiar esses povos oprimidos no Zimbabwe, em Gaza, e noutros sítios, como se faz em tantas partes do mundo? Porque é que só consegues fazer isso quando Angola ganha no basquete ou no futebol?” gaguejei e olhei para baixo envergonhado. Não estou ainda seguro sobre como vencer esta vergonha, e fazer algo. Advinho que esta vergonha não é só minha.

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