quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Frontalidade? Talvez sob o efeito do álcool…

A bebedeira soltou-lhe a língua e o espírito. Acabámos por ouvi-lo exprimir ideias interessantes, embora um pouco cruas. Presenciámos a uma frontalidade a que não estávamos habituados. Algumas daquelas ideias estavam até em embrião em muitos de nós mas, as várias inibições, interesses e o sentido de auto-preservação, sempre nos levaram a calá-las dentro de nós. Mais do que calá-las, abafávamos até o seu desenvolvimento.

O tipo não tinha sequer bebido tanto que se lhe enrolasse a língua, nem nós estávamos tão próximos que lhe conseguíssemos sentir o hálito. Foi a expressão livre e corajosamente frontal, descuidada até, que nos levou a pensar que havia ali álcool. Mas, foi agradável ouvi-lo. Aquele sentido de liberdade que se podia sentir na forma como se exprimia chegava a ser invejável. Era invejável especialmente naquele nosso ambiente onde todos pesavam constantemente o que dizer, como dizer, onde dizer, a quem dizer, calculando riscos, benefícios e custos, actuais e futuros. Um ambiente onde se seguia a regra de só dizer algo crítico para destruir ou enfraquecer um “inimigo” ou “competidor”. Tal regra não foi escrita nem afirmada em lado nenhum - mas cumprida com mais rigor do que muita lei escrita e aprovada pelas instituições apropriadas. Tal regra parecia ter até cláusulas como: o que for feito ou dito pelos inimigos ou competidores deve ser deturpado para lhe dar uma conotação negativa. E, também: as suas realizações devem ser transformadas em erros. Outra cláusula: se for amigo ou aliado, devemos ignorar as suas fraquezas (pelo menos não falar delas) ou então apresentá-las como virtudes. Assim, o amigo / aliado, poderá vir a retribuir o favor e, quando alguns dos nossos disparates ficarem visíveis, sempre teremos quem nos defenda. Não que defenda a justiça, mas que nos defenda a nós.

Naquele ambiente, mesmo no confronto de ideias, seguiam-se tácticas militares. Em particular as de guerrilha: atacar, fugir, e voltar a atacar noutro local. Nunca procurar um engajamento franco de troca de ideias. Compreensível, se considerarmos que o jogo não era, naquele ambiente, de trocar ideias, comunicar ou procurar a verdade. Tratava-se mais de destruir ou enfraquecer o inimigo, conquistar espaço e influência, e para isso mobilizar e apoiar aliados (e doadores?). Conquistar espaço, notoriedade (num certo tipo de mercado?). E quem seriam os inimigos? Fácil! Todos os que pensavam de forma diferente. Tentar entender o pensamento dos outros exige tempo (para escutar, para reflectir, para questionar com honestidade), e tempo é algo que não temos. Por questão de segurança, neste ambiente colocavam-se estes, que não entendíamos, na lista dos inimigos. É evidente que eram também inimigos aqueles que poderiam ser vistos como potenciais competidores pelo espaço que pensávamos ocupar, de preferência em regime de exclusividade. Naquele ambiente intelectualmente estreito, ter monopólio do discurso era considerado uma vantagem. Alguns chamaram-lhe complexo de Tarzan: a necessidade de nos sentirmos o único indivíduo (ou organização) pensante no meio duma multidão de macacos.

O discurso daquele indivíduo, etilicamente esclarecido e libertado, prendeu a atenção de todos nós. Apesar de não dizer grandes novidades – pois muito do que ele dizia em voz alta já muitos de nós sussuravam há algum tempo -, era uma estimulante novidade vê-lo solto das regras, compromissos, alianças e tácticas que tão tristemente nos limitavam. O álcool aproximou-o da verdade e deu-lhe limpidez ao discurso e ao raciocínio.

Voltei a encontrá-lo, no dia seguinte, quando ele recordava, incomodado, os excessos de bebida e de coragem, no dia anterior. Estava fisicamente indisposto e arrependido das verdades que tinha dito. Sentia que estava agora exposto (socialmente e ao nível do fígado) e que isso poderia ter alguns custos (na sociedade e na clínica). Eu lá tentei animá-lo e encorajei-o a sonhar com o dia em que iremos saborear a liberdade de nos exprimirmos com frontalidade e segurança sem os efeitos colaterais de para isso termos de recorrer aos “preciosos líquidos” que nos deixam etilizados e soltos. Concordámos que acelerar a criação desse ambiente, pelo menos na sociedade civil, não seria nada mau.

Combinámos então que ambos tentaríamos, numa primeira etapa, conquistar para o nosso sonho a Livia França da AJPD e o Luiz Araújo, da secção da SOS Habitat no exílio… A primeira, para dedicar mais tempo a ouvir atentamente, e sem preconceito, e debater ideias com aqueles de quem discorda (debater com quem concordamos é um pouco aborrecido, não?). Ao segundo para procurar as nuances que o mundo sempre oferece: para além da cor branca e da cor preta, é bom não ignorarmos a infinidade de cinzentos. Já para não falar de todas as outras cores. Ver todas elas torna o mundo mais complicado mas talvez também mais rico e com menos inimigos para combater. Até porque esses “inimigos” podem não passar do equivalente aos moinhos de vento que D.Quixote tanto, e ingloriamente, combatia. Começar por eles seria também uma forma de demonstrar reconhecimento, sincero, por me terem inspirado a escrever este texto.

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