segunda-feira, 30 de março de 2009

Pensava no meu pai

Neste dia cinzento, em que o calendário proporcionou mais uma oportunidade de descanso, descobri-me a pensar no meu pai. É estranho como pessoas que nos são tão próximas se afastam dos nossos pensamentos por períodos às vezes tão prolongados.

O meu pai foi o protótipo dos homens vindos de Portugal na década de 50 do século passado. Baixo, calvo, emanava entretanto uma rara sensação de força. Os olhos vivos, na sua cara resoluta, onde pontificava o nariz sem cana, que tinha partido nas suas aventuras de boxe quando era jovem, transmitia uma enorme decisão e auto-confiança, e igualmente uma ternura que não se suspeitava nos seus gestos. Os braços fortes, as mãos poderosas, eram quase uma contradição na sua figura moldada num metro e sessenta de barro, que se impunha onde estivesse pela sua decisão. Não me recordo dele nalgum momento de lazer. Sonhador, procurava dar forma aos seus sonhos, ainda que atropelasse as etapas e os resultados nunca fossem exactamente os desejados. Tampouco me recordo dele numa atitude de desânimo. A capacidade de se adaptar ao infortúnio, e de retirar forças dos fracassos momentâneos nunca a parece ter perdido, a não ser talvez no fim, quando na luta com o tumor maligno, não conseguiu aceitar a realidade, e encarar aquela luta como a derradeira, apesar de toda a sua vontade de a vencer.

Um entre dezasseis, dos quais sobreviveram doze, era um lutador que desde cedo aprendeu que a sobrevivência tinha que ser ganha a pulso. Nascido nas ilhas atlânticas dos Açores, recordo-me das suas primeiras recordações, quando ia com os irmãos à pesca naquelas águas revoltosas, e nos seus 5 anos, tinha a função de rezar. ‘Reza. Manel, reza’, dir-lhe-iam os irmãos nos momentos mais críticos, e eu imagino o olhar apavorado do menino-homem que seria o meu pai então… Trabalhando desde muito cedo, aos sete anos já procurava ganhar a vida ajudando na mercearia local, sempre teve para com o trabalho um reconhecimento exemplar, como se ali visse o caminho que lhe teria permitido escalar as montanhas dos seus sonhos, ganhar a sua independência, e construir algo seu, do qual muito se orgulhava. Nunca teve muito, mas o suficiente para pôr os sete filhos a estudar, e a tudo o que tinha dava o valor que se dá àquilo que é conquistado com o suor do rosto, e as penas da desilusão, no balanço entre a realidade e o sonho.

O meu pai não foi um pai carinhoso, mas justo. Quando vejo uma foto que tenho dele a beijar a testa de um dos meus filhos, quase sinto ciúme, pois não me lembro de gesto igual para comigo. No entanto, tinha um enorme orgulho nos filhos. De poucas palavras, não recordo muitas conversas. Apenas aquela em que me tratou pela primeira vez como um homem, olhando-me de igual para igual, eu na força da minha adolescência, e me falou nas coisas importantes da vida, na sua perspectiva, deixando-me conduzir o seu Datsun 1200, num passeio pela Ilha. Tão imerso estava nas suas palavras que, no regresso, acabei por cruzar em sentido contrário a Mutamba, nos tempos em que ainda se subia a Amílcar Cabral a partir da Marginal, e se tinha que curvar na Rua da Missão. Felizmente, eram tempos em que também não havia trânsito, e não houve consequências deste acidente de percurso. Noutra ocasião, quando inflamado defendia os meus pontos de vista revolucionários, numa plateia de pessoas mais velhas, de ideias contrárias às minhas, e que me procuravam desqualificar, por imberbe e inconveniente, foi ele que se levantou e deu literalmente um murro na mesa a exigir respeito por mim e pelas minhas opiniões, que eram, aliás, contrárias às dele.

Nas raras conversas que temos, os irmãos, em que emerge a figura do meu pai, a par da enorme confiança que em nós depositava, dando-nos tarefas com responsabilidades bem acima da nossa idade, surgem muitas vezes retratos das ocasiões em que o seu rigor se traduziu por alguma repreensão mais violenta. Um tabefe com as suas mãos calejadas, ou mesmo uma tareia de cinto, previsível porque motivada, em que a vítima se preparava, e vestia antes de se apresentar, mais umas calças e uma camisola, não eram frequentes mas aconteceram. Mas em nenhuma sinto o menor sentimento de rancor. As regras sempre estiveram extremamente claras, e as obrigações eram conhecidas, assim como os riscos da prevaricação.

O meu pai preparou-nos para a vida. E nós estamos-lhe profundamente agradecidos.

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