"A perversão do crescimento económico e seus resultados começa quando procuramos substituir a escassez de serviços públicos por privados, procurando no sector privado um triste refúgio para a frustração social. (The perversion of economic growth and its fruits begins when we attempt to make up for the scarcity of public goods by producing more private ones, and to find in private consumption a barren solace for social frustration.)" Roberto Mangabeira Unger
Quando li o texto de Prince Mashele no Mail & Guardian Online, não pude deixar de reparar nas semelhanças que existem entre as sociedades sul-africana e angolana, em particular, e, de um modo geral, entre todas as sociedades dos países eufemisticamente considerados em vias de desenvolvimento, nomeadamente aqueles que conseguiram criar bolsas de riqueza num mar de pobreza e injustiça.
Mas isto é já por demais conhecido, e, tal como com os antibióticos, tornou-se tão comum referi-lo, que o nosso organismo, a nossa consciência, deixou de ser afectada por este tipo de preocupação. Construímos o nosso mundo, de janelas pintadas, e esquecemo-nos dos outros.
O que gostei no artigo que refiro, é a forma directa como somos confrontados com a realidade. É tão fácil refugiarmo-nos num microcosmo que construímos, até para satisfazer a nossa necessidade de nos sentirmos bem connosco próprios… É a técnica da caridade cristã. Faz-se uma boa acção por dia, e podemos ficar de bem com a nossa consciência. Entretanto colocamos, se podemos, os nossos filhos em escolas privadas, ou mandamo-los para o exterior, vamos a clínicas privadas, e até contratamos segurança privada para proteger os bens que acumulamos… Como dizia Maiakovski num célebre poema, enquanto a injustiça se desenrola no quintal do vizinho, viramos a cara para o lado. Mas há um dia que ela nos irá tocar. É inevitável. E aí colocar-nos-emos a pergunta, talvez demasiado tarde: onde estávamos nós quando se começou a registar a falência das instituições públicas? Aquelas que devem garantir, a todos, um nível aceitável de serviços, e de vida?
Acredito sinceramente que só com o exemplo de quem lidera se pode fazer com que os liderados ajam de forma a que o país avance na direcção certa. E isso é uma responsabilidade que começa nos dirigentes do País, e se estende por todos os que podemos, nas nossas áreas de actividade, influenciar aqueles com quem lidamos.
Temos que gostar do nosso país. Mas é fundamental que isso não seja apenas um sentimento abstracto. Não basta deleitarmo-nos com as paisagens, ou os acidentes naturais de que profusamente a mesma se encontra polvilhada, nem exultarmos com as vitórias das nossas selecções. É preciso termos orgulho das nossas instituições. Só quando pudermos falar com orgulho dos nossos políticos, da nossa administração pública, da nossa polícia, dos nossos hospitais e escolas públicos, é que poderemos sentir verdadeiro orgulho em Angola.
E para isso, como dizia Bertold Brecht, não basta lutar um dia, apesar de isso já ser bom. Para que sejamos imprescindíveis, teremos que o fazer toda a vida.
domingo, 21 de junho de 2009
Os pardais e as andorinhas
Os factos que relato a seguir são absolutamente fidedignos. As conclusões pode ser que sejam precipitadas, fruto de uma distorcida experiência de vida.
Tenho a felicidade de ter uma varanda onde os pássaros escolheram fazer ninho. Confesso que, numa reacção própria do género humano, a minha atitude inicial foi de preservação da propriedade, mas, felizmente, a razão falou mais alto, e logo me foi dado descobrir que era um verdadeiro privilégio partilhá-la com espécies que só podiam melhorar a minha relação com o espaço circundante.
Num dos extremos da varanda, num pequeno projector que ali tenho, os pardais foram os primeiros a manifestar a sua intenção de ali se instalarem. Num frenesim digno de nota, começaram a transportar pedaços de capim, transformando, num ápice, o projector num local de acolhimento que fazia pena. A técnica construtiva era uma desgraça, e os pobres pardais todos os dias tinham que devotar horas a remendar o que tinha sido tão mal projectado. Isso não os impediu de ocuparem efectivamente o local, levando-nos a não acender mais o projector, por razões óbvias, e desenvolverem a sua relação matrimonial, culminando com o gratificante aparecimento de novos seres, uma ninhada que ali foi criada. Mas dava dó, nos momentos que podíamos estar na varanda, ver o rodopiar dos pardais, a remendar o ninho, que, de tão mal feito, escorregava por todos os lados do projector.
Isto passou-se , e estavam os primeiros pardalitos criados, apareceram umas andorinhas que, no outro extremo da varanda, começaram a construir o seu ninho. Que diferença!. Num grupo de três, trabalhavam incansável e metodicamente. Uma técnica construtiva elaborada foi permitindo ver surgir perante os nossos olhos um refúgio de barro que apresentava características em tudo superiores ao dos seus vizinhos. Demorou. Numas longas três semanas, bicada a bicada, as andorinhas fizeram surgir o seu ninho de formas perfeitas, enquanto os pardais continuavam na sua tarefa de remendar o que tinham tão mal construído. Um dia vimo-las, finalmente, desfrutar do que tinham tão arduamente conseguido fazer. Os seus voos magníficos eram uma elegia ao esforço que tinham dispendido para fazer algo que parecia estar ali para durar.
Atrevi-me então, a tirar uma primeira conclusão: o esforço planificado com vista à obtenção de um produto de qualidade, ainda que demorasse mais a poder ser usufruído, valia a pena, pelas vantagens que traria no futuro. Estava feliz com a conclusão. Estava de acordo com os meus princípios, e era uma bela lição de gestão, e de vida..
Para minha surpresa, na semana seguinte, vi um ataque dos pardais à propriedade das andorinhas. Postavam-se à entrada do ninho, e procuravam impedi-las de a ele aceder. Eu não queria acreditar no que estava a suceder! As pobres andorinhas procuraram defender o que tinham construído com tanto esforço, mas debalde. A presença dos pardais, mais encorpados, acabaram por fazê-las desistir, e foi com uma enorme frustração que vi os pardais apoderarem-se do ninho que não tinham construído.
Ainda pensei interferir, mas achei por bem não tomar parte nos desígnios da Natureza, e foi com a alma sombria que retirei uma segunda conclusão: este Mundo é dos espertos, e não há, evidentemente, justiça. Nem sempre os que mais se esforçam são recompensados.
E foi com este estado de espírito que vi os pardais procriarem novamente, no ninho das andorinhas. Reconheço que não desfrutei como devia do espectáculo que constitui a alimentação dos pequenos seres. A boca aberta dos pardalitos disputando do bico dos pais o sustento. O seu trinar inseguro. Eles não tinham culpa, mas não podia deixar de pensar no que se tinha passado, e como os pais tinham agido para com os verdadeiros proprietários daquele espaço.
Os pardalitos cresceram, e procuraram fazer o seu primeiro voo. Não sei se pelo facto da configuração do ninho não estar adequada à sua espécie, acabaram por cair, e a minha cadela, uma pastora alemã que também gosta de estar na varanda, matou-os.
Decidi não retirar mais nenhuma conclusão. Hoje, os ninhos estão abandonados. E eu, com uma sensação incómoda que não consigo definir.
Tenho a felicidade de ter uma varanda onde os pássaros escolheram fazer ninho. Confesso que, numa reacção própria do género humano, a minha atitude inicial foi de preservação da propriedade, mas, felizmente, a razão falou mais alto, e logo me foi dado descobrir que era um verdadeiro privilégio partilhá-la com espécies que só podiam melhorar a minha relação com o espaço circundante.
Num dos extremos da varanda, num pequeno projector que ali tenho, os pardais foram os primeiros a manifestar a sua intenção de ali se instalarem. Num frenesim digno de nota, começaram a transportar pedaços de capim, transformando, num ápice, o projector num local de acolhimento que fazia pena. A técnica construtiva era uma desgraça, e os pobres pardais todos os dias tinham que devotar horas a remendar o que tinha sido tão mal projectado. Isso não os impediu de ocuparem efectivamente o local, levando-nos a não acender mais o projector, por razões óbvias, e desenvolverem a sua relação matrimonial, culminando com o gratificante aparecimento de novos seres, uma ninhada que ali foi criada. Mas dava dó, nos momentos que podíamos estar na varanda, ver o rodopiar dos pardais, a remendar o ninho, que, de tão mal feito, escorregava por todos os lados do projector.
Isto passou-se , e estavam os primeiros pardalitos criados, apareceram umas andorinhas que, no outro extremo da varanda, começaram a construir o seu ninho. Que diferença!. Num grupo de três, trabalhavam incansável e metodicamente. Uma técnica construtiva elaborada foi permitindo ver surgir perante os nossos olhos um refúgio de barro que apresentava características em tudo superiores ao dos seus vizinhos. Demorou. Numas longas três semanas, bicada a bicada, as andorinhas fizeram surgir o seu ninho de formas perfeitas, enquanto os pardais continuavam na sua tarefa de remendar o que tinham tão mal construído. Um dia vimo-las, finalmente, desfrutar do que tinham tão arduamente conseguido fazer. Os seus voos magníficos eram uma elegia ao esforço que tinham dispendido para fazer algo que parecia estar ali para durar.
Atrevi-me então, a tirar uma primeira conclusão: o esforço planificado com vista à obtenção de um produto de qualidade, ainda que demorasse mais a poder ser usufruído, valia a pena, pelas vantagens que traria no futuro. Estava feliz com a conclusão. Estava de acordo com os meus princípios, e era uma bela lição de gestão, e de vida..
Para minha surpresa, na semana seguinte, vi um ataque dos pardais à propriedade das andorinhas. Postavam-se à entrada do ninho, e procuravam impedi-las de a ele aceder. Eu não queria acreditar no que estava a suceder! As pobres andorinhas procuraram defender o que tinham construído com tanto esforço, mas debalde. A presença dos pardais, mais encorpados, acabaram por fazê-las desistir, e foi com uma enorme frustração que vi os pardais apoderarem-se do ninho que não tinham construído.
Ainda pensei interferir, mas achei por bem não tomar parte nos desígnios da Natureza, e foi com a alma sombria que retirei uma segunda conclusão: este Mundo é dos espertos, e não há, evidentemente, justiça. Nem sempre os que mais se esforçam são recompensados.
E foi com este estado de espírito que vi os pardais procriarem novamente, no ninho das andorinhas. Reconheço que não desfrutei como devia do espectáculo que constitui a alimentação dos pequenos seres. A boca aberta dos pardalitos disputando do bico dos pais o sustento. O seu trinar inseguro. Eles não tinham culpa, mas não podia deixar de pensar no que se tinha passado, e como os pais tinham agido para com os verdadeiros proprietários daquele espaço.
Os pardalitos cresceram, e procuraram fazer o seu primeiro voo. Não sei se pelo facto da configuração do ninho não estar adequada à sua espécie, acabaram por cair, e a minha cadela, uma pastora alemã que também gosta de estar na varanda, matou-os.
Decidi não retirar mais nenhuma conclusão. Hoje, os ninhos estão abandonados. E eu, com uma sensação incómoda que não consigo definir.
Ás 5 da Manhã
Havia todo um conjunto de coisas que se podiam fazer às 5 da manhã! Era, normalmente, a hora em que iríamos surpreender o Sol, esse despertador universal desta vez traído, a nascer, esfregando o olho enorme, sobre uma paisagem de imbondeiros e esperança, numa agradável viagem pelo interior do país. Podia representar o acto de penitência, ligado à expectativa de umas férias merecidas, e que começavam com esse insensível despertar, prelúdio da caminhada que nos levava, ensonados, ao aeroporto. Ou a recordação das madrugadas na lavra, nas jornadas revolucionárias do passado, aprender para melhor servir, semeando, na frescura da manhã, uma paragem mais tarde para o matete, a jornada interrompida logo que o Sol fosse alto. As 5 da manhã era o limiar do místico. Antes disso, era quase obsceno!
Hoje, é a hora da já interminável fila de viaturas que se aventura, numa vaga contínua, pelas margens estreitas das vias de acesso ao centro de Luanda, dia após dia, para desaguar num mar exíguo e que, minuto a minuto, vai transbordando de carros e incompreensão. A poesia do momento foi-se, e mesmo o rei Sol, cujo olhar é ignorado pelos seus ignorados súbditos, já não se surpreende por acordar no meio de tamanha confusão.
Luanda acorda cedo. Como dizia uma cidadã, nascida na pacata vila de Calulo, numa conversa com um seu conterrâneo, que ali surpreendi: Luanda, hoje em dia, só para ir de férias! Olha só - e mostrou o telemóvel, o despertador toca às quatro e meia! E depois é só engarrafamento, até de pessoas! E aguentar isso todos os dias…
Não deixa de ser curioso, na torrente de veículos que procuram evitar a hora de paragem das águas, verificar uma certa democracia no sacrifício. Há carros de todos os tipos, e o VX, convive, aparentemente sem qualquer problema, com o starlet que já transporta os primeiros clientes. As cenas que se podem observar são as mais variadas, desde a típica cena familiar da mãe que vai cuidando das crianças ainda adormecidas, aos que aproveitam, quando têm um condutor para os transportar, para se abandonarem na ponta final do sono. Os mais sofisticados consultam mesmo os primeiros documentos do dia, à luz de uma lanterna portátil. Mas o mais comum, é ver pessoas já aquela hora com um grau de ansiedade que transparece nos olhos e nos gestos. Na brusquidão da condução. Na intolerância com que se tratam. Pergunto-me se não estaremos a perder a bonomia que nos caracterizava, caminhando, a passos largos, para o carácter cinzento que tanto criticávamos nos outros. Pergunto-me se não nos estaremos a perder nesta corrida para nenhures, na procura desenfreada por um rápido crescimento, sacrificando o importante em detrimento do imediato. Luanda está indubitavelmente a crescer. E está sem dúvida materialmente mais rica. O número de viaturas é uma prova viva disso. Mas os sonhos interrompidos, todos os dias, no abrir de olhos para a noite, está a fazer de nós pessoas mais pobres.
Como dizia recentemente o Presidente da República, no Fórum da Habitação, é preciso encontrar soluções para melhorar a qualidade de vida do cidadão luandense. É preciso criar novas centralidades, e, de caminho, preservar o pouco que nos resta de característico na nossa velha cidade. O aumento de pressão sobre a baixa de Luanda, e o seu centro histórico, com a proliferação de símbolos fálicos um pouco por todo o lado, sem a preocupação de antes se adequar a infra-estrutura às necessidades que os mesmos criam, não pode ser a solução. É preciso restituirmos a poesia ao amanhecer. E colocar, com o Sol nascente, um sorriso no rosto de cada um dos nossos concidadãos.
Temos que conseguir deixar o Sol, o despertador universal, reocupar a sua função.
Hoje, é a hora da já interminável fila de viaturas que se aventura, numa vaga contínua, pelas margens estreitas das vias de acesso ao centro de Luanda, dia após dia, para desaguar num mar exíguo e que, minuto a minuto, vai transbordando de carros e incompreensão. A poesia do momento foi-se, e mesmo o rei Sol, cujo olhar é ignorado pelos seus ignorados súbditos, já não se surpreende por acordar no meio de tamanha confusão.
Luanda acorda cedo. Como dizia uma cidadã, nascida na pacata vila de Calulo, numa conversa com um seu conterrâneo, que ali surpreendi: Luanda, hoje em dia, só para ir de férias! Olha só - e mostrou o telemóvel, o despertador toca às quatro e meia! E depois é só engarrafamento, até de pessoas! E aguentar isso todos os dias…
Não deixa de ser curioso, na torrente de veículos que procuram evitar a hora de paragem das águas, verificar uma certa democracia no sacrifício. Há carros de todos os tipos, e o VX, convive, aparentemente sem qualquer problema, com o starlet que já transporta os primeiros clientes. As cenas que se podem observar são as mais variadas, desde a típica cena familiar da mãe que vai cuidando das crianças ainda adormecidas, aos que aproveitam, quando têm um condutor para os transportar, para se abandonarem na ponta final do sono. Os mais sofisticados consultam mesmo os primeiros documentos do dia, à luz de uma lanterna portátil. Mas o mais comum, é ver pessoas já aquela hora com um grau de ansiedade que transparece nos olhos e nos gestos. Na brusquidão da condução. Na intolerância com que se tratam. Pergunto-me se não estaremos a perder a bonomia que nos caracterizava, caminhando, a passos largos, para o carácter cinzento que tanto criticávamos nos outros. Pergunto-me se não nos estaremos a perder nesta corrida para nenhures, na procura desenfreada por um rápido crescimento, sacrificando o importante em detrimento do imediato. Luanda está indubitavelmente a crescer. E está sem dúvida materialmente mais rica. O número de viaturas é uma prova viva disso. Mas os sonhos interrompidos, todos os dias, no abrir de olhos para a noite, está a fazer de nós pessoas mais pobres.
Como dizia recentemente o Presidente da República, no Fórum da Habitação, é preciso encontrar soluções para melhorar a qualidade de vida do cidadão luandense. É preciso criar novas centralidades, e, de caminho, preservar o pouco que nos resta de característico na nossa velha cidade. O aumento de pressão sobre a baixa de Luanda, e o seu centro histórico, com a proliferação de símbolos fálicos um pouco por todo o lado, sem a preocupação de antes se adequar a infra-estrutura às necessidades que os mesmos criam, não pode ser a solução. É preciso restituirmos a poesia ao amanhecer. E colocar, com o Sol nascente, um sorriso no rosto de cada um dos nossos concidadãos.
Temos que conseguir deixar o Sol, o despertador universal, reocupar a sua função.
terça-feira, 7 de abril de 2009
O Código e a Conduta
Excitadíssimos com o advento de um novo instrumento para que se dê mais um passo na direcção do melhor que se faz no Mundo, o novíssimo Código de Estrada, não podemos deixar de reflectir sobre as suas implicações. Como para validar o ditado, por nós adaptado, das mil chuvas de Abril, o céu não se tem feito rogado, e colocou-nos uma vez mais à prova. A importância da chuva, neste contexto, não tem a haver apenas com o caos que imediatamente toma proporções alarmantes na nossa cidade, mas é igualmente um verdadeiro teste a todos os que podem credibilizar este esforço legislativo.
Reconheço em mim algum cepticismo perante o entusiasmo que determinadas iniciativas provocam, em particular quando as mesmas surgem de cima para baixo. É verdade que é um factor importante para provocar a mudança, a promulgação de novas leis. O meu cepticismo, no entanto, baseia-se na incapacidade que temos vindo a demonstrar quando procuramos traduzi-las em prática. E para verificarmos isso não precisamos de ir muito longe. Basta ver a quantidade de carros ‘novos’ que continuam a ser importados sem as mínimas condições técnicas, enchendo de fumo e ferro velho as nossas degradadas vias, contrariando posturas que isso deveria impedir. No que respeita ao Código de Estrada, o que me preocupa é a criação de condições para que ele possa efectivamente ser seguido. E não falo apenas nos artefactos para ligar o telemóvel ao auricular, ou a cadeira para o bebé, ou os cintos de segurança que serão um problema para os azulinhos. Falo na sinalização rodoviária, nas estradas em condições, no comportamento de todos os utentes da via pública…
E aí entram as mil chuvas de Abril. Não há código que resista á imobilidade dos responsáveis pela conservação das vias que se desfazem inexoravelmente sob o olhar horrorizado dos automobilistas, um pouco por toda a cidade, provocando monstruosos engarrafamentos logo às primeiras horas da manhã. Não há código que resista ao comportamento dos nossos concidadãos ao volante, em particular quando aumentam os obstáculos. As dificuldades exacerbam o que de pior há em nós, e nestes momentos de maior pressão, vem ao de cima o que vimos exercitando de mais malévolo, sendo o espertismo e a falta de respeito duas das consequências mais visíveis na estrada. Em cada ponto de constrangimento, o número de filas que se podem formar tende para o infinito, prejudicando, naturalmente, aqueles que procurarem seguir alguma espécie de código. E a regra de que quanto mais se prevarica, mais rapidamente se passa, é invariavelmente seguida.
Bom, mas não vamos ser pessimistas. Reconheçamos que é importante actualizar o que está caduco. Mas que se tenha consciência que há coisas que estão ao nosso alcance fazer e que não estão a ser feitas. E que é importante fazê-las para que os objectivos sejam atingidos. Parece fundamental que as administrações municipais intervenham de forma mais activa na conservação das vias terciárias, o que passa muitas vezes pela reparação de pequenos buracos, e pela limpeza das valas de drenagem. Que a estrutura provincial não deixe que as vias principais se degradem, mesmo que tenha que adoptar medidas provisórias com o carácter de emergência. E que haja uma enorme campanha no sentido de se criar uma nova mentalidade na nossa gente, para que todos, mas mesmo todos (incluindo os motociclistas e as viaturas oficias!), cumpram a lei e colham os benefícios..
A questão do trânsito tem enormes implicações sociais, económicas, ambientais e até de saúde pública. E, neste momento, tanto ou mais que um novo Código de Estrada, precisamos de um novo Código de Conduta.
Reconheço em mim algum cepticismo perante o entusiasmo que determinadas iniciativas provocam, em particular quando as mesmas surgem de cima para baixo. É verdade que é um factor importante para provocar a mudança, a promulgação de novas leis. O meu cepticismo, no entanto, baseia-se na incapacidade que temos vindo a demonstrar quando procuramos traduzi-las em prática. E para verificarmos isso não precisamos de ir muito longe. Basta ver a quantidade de carros ‘novos’ que continuam a ser importados sem as mínimas condições técnicas, enchendo de fumo e ferro velho as nossas degradadas vias, contrariando posturas que isso deveria impedir. No que respeita ao Código de Estrada, o que me preocupa é a criação de condições para que ele possa efectivamente ser seguido. E não falo apenas nos artefactos para ligar o telemóvel ao auricular, ou a cadeira para o bebé, ou os cintos de segurança que serão um problema para os azulinhos. Falo na sinalização rodoviária, nas estradas em condições, no comportamento de todos os utentes da via pública…
E aí entram as mil chuvas de Abril. Não há código que resista á imobilidade dos responsáveis pela conservação das vias que se desfazem inexoravelmente sob o olhar horrorizado dos automobilistas, um pouco por toda a cidade, provocando monstruosos engarrafamentos logo às primeiras horas da manhã. Não há código que resista ao comportamento dos nossos concidadãos ao volante, em particular quando aumentam os obstáculos. As dificuldades exacerbam o que de pior há em nós, e nestes momentos de maior pressão, vem ao de cima o que vimos exercitando de mais malévolo, sendo o espertismo e a falta de respeito duas das consequências mais visíveis na estrada. Em cada ponto de constrangimento, o número de filas que se podem formar tende para o infinito, prejudicando, naturalmente, aqueles que procurarem seguir alguma espécie de código. E a regra de que quanto mais se prevarica, mais rapidamente se passa, é invariavelmente seguida.
Bom, mas não vamos ser pessimistas. Reconheçamos que é importante actualizar o que está caduco. Mas que se tenha consciência que há coisas que estão ao nosso alcance fazer e que não estão a ser feitas. E que é importante fazê-las para que os objectivos sejam atingidos. Parece fundamental que as administrações municipais intervenham de forma mais activa na conservação das vias terciárias, o que passa muitas vezes pela reparação de pequenos buracos, e pela limpeza das valas de drenagem. Que a estrutura provincial não deixe que as vias principais se degradem, mesmo que tenha que adoptar medidas provisórias com o carácter de emergência. E que haja uma enorme campanha no sentido de se criar uma nova mentalidade na nossa gente, para que todos, mas mesmo todos (incluindo os motociclistas e as viaturas oficias!), cumpram a lei e colham os benefícios..
A questão do trânsito tem enormes implicações sociais, económicas, ambientais e até de saúde pública. E, neste momento, tanto ou mais que um novo Código de Estrada, precisamos de um novo Código de Conduta.
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4 de Abril de 2009 (Jornal de Angola)
segunda-feira, 30 de março de 2009
Pensava no meu pai
Neste dia cinzento, em que o calendário proporcionou mais uma oportunidade de descanso, descobri-me a pensar no meu pai. É estranho como pessoas que nos são tão próximas se afastam dos nossos pensamentos por períodos às vezes tão prolongados.
O meu pai foi o protótipo dos homens vindos de Portugal na década de 50 do século passado. Baixo, calvo, emanava entretanto uma rara sensação de força. Os olhos vivos, na sua cara resoluta, onde pontificava o nariz sem cana, que tinha partido nas suas aventuras de boxe quando era jovem, transmitia uma enorme decisão e auto-confiança, e igualmente uma ternura que não se suspeitava nos seus gestos. Os braços fortes, as mãos poderosas, eram quase uma contradição na sua figura moldada num metro e sessenta de barro, que se impunha onde estivesse pela sua decisão. Não me recordo dele nalgum momento de lazer. Sonhador, procurava dar forma aos seus sonhos, ainda que atropelasse as etapas e os resultados nunca fossem exactamente os desejados. Tampouco me recordo dele numa atitude de desânimo. A capacidade de se adaptar ao infortúnio, e de retirar forças dos fracassos momentâneos nunca a parece ter perdido, a não ser talvez no fim, quando na luta com o tumor maligno, não conseguiu aceitar a realidade, e encarar aquela luta como a derradeira, apesar de toda a sua vontade de a vencer.
Um entre dezasseis, dos quais sobreviveram doze, era um lutador que desde cedo aprendeu que a sobrevivência tinha que ser ganha a pulso. Nascido nas ilhas atlânticas dos Açores, recordo-me das suas primeiras recordações, quando ia com os irmãos à pesca naquelas águas revoltosas, e nos seus 5 anos, tinha a função de rezar. ‘Reza. Manel, reza’, dir-lhe-iam os irmãos nos momentos mais críticos, e eu imagino o olhar apavorado do menino-homem que seria o meu pai então… Trabalhando desde muito cedo, aos sete anos já procurava ganhar a vida ajudando na mercearia local, sempre teve para com o trabalho um reconhecimento exemplar, como se ali visse o caminho que lhe teria permitido escalar as montanhas dos seus sonhos, ganhar a sua independência, e construir algo seu, do qual muito se orgulhava. Nunca teve muito, mas o suficiente para pôr os sete filhos a estudar, e a tudo o que tinha dava o valor que se dá àquilo que é conquistado com o suor do rosto, e as penas da desilusão, no balanço entre a realidade e o sonho.
O meu pai não foi um pai carinhoso, mas justo. Quando vejo uma foto que tenho dele a beijar a testa de um dos meus filhos, quase sinto ciúme, pois não me lembro de gesto igual para comigo. No entanto, tinha um enorme orgulho nos filhos. De poucas palavras, não recordo muitas conversas. Apenas aquela em que me tratou pela primeira vez como um homem, olhando-me de igual para igual, eu na força da minha adolescência, e me falou nas coisas importantes da vida, na sua perspectiva, deixando-me conduzir o seu Datsun 1200, num passeio pela Ilha. Tão imerso estava nas suas palavras que, no regresso, acabei por cruzar em sentido contrário a Mutamba, nos tempos em que ainda se subia a Amílcar Cabral a partir da Marginal, e se tinha que curvar na Rua da Missão. Felizmente, eram tempos em que também não havia trânsito, e não houve consequências deste acidente de percurso. Noutra ocasião, quando inflamado defendia os meus pontos de vista revolucionários, numa plateia de pessoas mais velhas, de ideias contrárias às minhas, e que me procuravam desqualificar, por imberbe e inconveniente, foi ele que se levantou e deu literalmente um murro na mesa a exigir respeito por mim e pelas minhas opiniões, que eram, aliás, contrárias às dele.
Nas raras conversas que temos, os irmãos, em que emerge a figura do meu pai, a par da enorme confiança que em nós depositava, dando-nos tarefas com responsabilidades bem acima da nossa idade, surgem muitas vezes retratos das ocasiões em que o seu rigor se traduziu por alguma repreensão mais violenta. Um tabefe com as suas mãos calejadas, ou mesmo uma tareia de cinto, previsível porque motivada, em que a vítima se preparava, e vestia antes de se apresentar, mais umas calças e uma camisola, não eram frequentes mas aconteceram. Mas em nenhuma sinto o menor sentimento de rancor. As regras sempre estiveram extremamente claras, e as obrigações eram conhecidas, assim como os riscos da prevaricação.
O meu pai preparou-nos para a vida. E nós estamos-lhe profundamente agradecidos.
O meu pai foi o protótipo dos homens vindos de Portugal na década de 50 do século passado. Baixo, calvo, emanava entretanto uma rara sensação de força. Os olhos vivos, na sua cara resoluta, onde pontificava o nariz sem cana, que tinha partido nas suas aventuras de boxe quando era jovem, transmitia uma enorme decisão e auto-confiança, e igualmente uma ternura que não se suspeitava nos seus gestos. Os braços fortes, as mãos poderosas, eram quase uma contradição na sua figura moldada num metro e sessenta de barro, que se impunha onde estivesse pela sua decisão. Não me recordo dele nalgum momento de lazer. Sonhador, procurava dar forma aos seus sonhos, ainda que atropelasse as etapas e os resultados nunca fossem exactamente os desejados. Tampouco me recordo dele numa atitude de desânimo. A capacidade de se adaptar ao infortúnio, e de retirar forças dos fracassos momentâneos nunca a parece ter perdido, a não ser talvez no fim, quando na luta com o tumor maligno, não conseguiu aceitar a realidade, e encarar aquela luta como a derradeira, apesar de toda a sua vontade de a vencer.
Um entre dezasseis, dos quais sobreviveram doze, era um lutador que desde cedo aprendeu que a sobrevivência tinha que ser ganha a pulso. Nascido nas ilhas atlânticas dos Açores, recordo-me das suas primeiras recordações, quando ia com os irmãos à pesca naquelas águas revoltosas, e nos seus 5 anos, tinha a função de rezar. ‘Reza. Manel, reza’, dir-lhe-iam os irmãos nos momentos mais críticos, e eu imagino o olhar apavorado do menino-homem que seria o meu pai então… Trabalhando desde muito cedo, aos sete anos já procurava ganhar a vida ajudando na mercearia local, sempre teve para com o trabalho um reconhecimento exemplar, como se ali visse o caminho que lhe teria permitido escalar as montanhas dos seus sonhos, ganhar a sua independência, e construir algo seu, do qual muito se orgulhava. Nunca teve muito, mas o suficiente para pôr os sete filhos a estudar, e a tudo o que tinha dava o valor que se dá àquilo que é conquistado com o suor do rosto, e as penas da desilusão, no balanço entre a realidade e o sonho.
O meu pai não foi um pai carinhoso, mas justo. Quando vejo uma foto que tenho dele a beijar a testa de um dos meus filhos, quase sinto ciúme, pois não me lembro de gesto igual para comigo. No entanto, tinha um enorme orgulho nos filhos. De poucas palavras, não recordo muitas conversas. Apenas aquela em que me tratou pela primeira vez como um homem, olhando-me de igual para igual, eu na força da minha adolescência, e me falou nas coisas importantes da vida, na sua perspectiva, deixando-me conduzir o seu Datsun 1200, num passeio pela Ilha. Tão imerso estava nas suas palavras que, no regresso, acabei por cruzar em sentido contrário a Mutamba, nos tempos em que ainda se subia a Amílcar Cabral a partir da Marginal, e se tinha que curvar na Rua da Missão. Felizmente, eram tempos em que também não havia trânsito, e não houve consequências deste acidente de percurso. Noutra ocasião, quando inflamado defendia os meus pontos de vista revolucionários, numa plateia de pessoas mais velhas, de ideias contrárias às minhas, e que me procuravam desqualificar, por imberbe e inconveniente, foi ele que se levantou e deu literalmente um murro na mesa a exigir respeito por mim e pelas minhas opiniões, que eram, aliás, contrárias às dele.
Nas raras conversas que temos, os irmãos, em que emerge a figura do meu pai, a par da enorme confiança que em nós depositava, dando-nos tarefas com responsabilidades bem acima da nossa idade, surgem muitas vezes retratos das ocasiões em que o seu rigor se traduziu por alguma repreensão mais violenta. Um tabefe com as suas mãos calejadas, ou mesmo uma tareia de cinto, previsível porque motivada, em que a vítima se preparava, e vestia antes de se apresentar, mais umas calças e uma camisola, não eram frequentes mas aconteceram. Mas em nenhuma sinto o menor sentimento de rancor. As regras sempre estiveram extremamente claras, e as obrigações eram conhecidas, assim como os riscos da prevaricação.
O meu pai preparou-nos para a vida. E nós estamos-lhe profundamente agradecidos.
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10 de Março de 2009 (Jornal de Angola)
Pensava no meu pai
Neste dia cinzento, em que o calendário proporcionou mais uma oportunidade de descanso, descobri-me a pensar no meu pai. É estranho como pessoas que nos são tão próximas se afastam dos nossos pensamentos por períodos às vezes tão prolongados.
O meu pai foi o protótipo dos homens vindos de Portugal na década de 50 do século passado. Baixo, calvo, emanava entretanto uma rara sensação de força. Os olhos vivos, na sua cara resoluta, onde pontificava o nariz sem cana, que tinha partido nas suas aventuras de boxe quando era jovem, transmitia uma enorme decisão e auto-confiança, e igualmente uma ternura que não se suspeitava nos seus gestos. Os braços fortes, as mãos poderosas, eram quase uma contradição na sua figura moldada num metro e sessenta de barro, que se impunha onde estivesse pela sua decisão. Não me recordo dele nalgum momento de lazer. Sonhador, procurava dar forma aos seus sonhos, ainda que atropelasse as etapas e os resultados nunca fossem exactamente os desejados. Tampouco me recordo dele numa atitude de desânimo. A capacidade de se adaptar ao infortúnio, e de retirar forças dos fracassos momentâneos nunca a parece ter perdido, a não ser talvez no fim, quando na luta com o tumor maligno, não conseguiu aceitar a realidade, e encarar aquela luta como a derradeira, apesar de toda a sua vontade de a vencer.
Um entre dezasseis, dos quais sobreviveram doze, era um lutador que desde cedo aprendeu que a sobrevivência tinha que ser ganha a pulso. Nascido nas ilhas atlânticas dos Açores, recordo-me das suas primeiras recordações, quando ia com os irmãos à pesca naquelas águas revoltosas, e nos seus 5 anos, tinha a função de rezar. ‘Reza. Manel, reza’, dir-lhe-iam os irmãos nos momentos mais críticos, e eu imagino o olhar apavorado do menino-homem que seria o meu pai então… Trabalhando desde muito cedo, aos sete anos já procurava ganhar a vida ajudando na mercearia local, sempre teve para com o trabalho um reconhecimento exemplar, como se ali visse o caminho que lhe teria permitido escalar as montanhas dos seus sonhos, ganhar a sua independência, e construir algo seu, do qual muito se orgulhava. Nunca teve muito, mas o suficiente para pôr os sete filhos a estudar, e a tudo o que tinha dava o valor que se dá àquilo que é conquistado com o suor do rosto, e as penas da desilusão, no balanço entre a realidade e o sonho.
O meu pai não foi um pai carinhoso, mas justo. Quando vejo uma foto que tenho dele a beijar a testa de um dos meus filhos, quase sinto ciúme, pois não me lembro de gesto igual para comigo. No entanto, tinha um enorme orgulho nos filhos. De poucas palavras, não recordo muitas conversas. Apenas aquela em que me tratou pela primeira vez como um homem, olhando-me de igual para igual, eu na força da minha adolescência, e me falou nas coisas importantes da vida, na sua perspectiva, deixando-me conduzir o seu Datsun 1200, num passeio pela Ilha. Tão imerso estava nas suas palavras que, no regresso, acabei por cruzar em sentido contrário a Mutamba, nos tempos em que ainda se subia a Amílcar Cabral a partir da Marginal, e se tinha que curvar na Rua da Missão. Felizmente, eram tempos em que também não havia trânsito, e não houve consequências deste acidente de percurso. Noutra ocasião, quando inflamado defendia os meus pontos de vista revolucionários, numa plateia de pessoas mais velhas, de ideias contrárias às minhas, e que me procuravam desqualificar, por imberbe e inconveniente, foi ele que se levantou e deu literalmente um murro na mesa a exigir respeito por mim e pelas minhas opiniões, que eram, aliás, contrárias às dele.
Nas raras conversas que temos, os irmãos, em que emerge a figura do meu pai, a par da enorme confiança que em nós depositava, dando-nos tarefas com responsabilidades bem acima da nossa idade, surgem muitas vezes retratos das ocasiões em que o seu rigor se traduziu por alguma repreensão mais violenta. Um tabefe com as suas mãos calejadas, ou mesmo uma tareia de cinto, previsível porque motivada, em que a vítima se preparava, e vestia antes de se apresentar, mais umas calças e uma camisola, não eram frequentes mas aconteceram. Mas em nenhuma sinto o menor sentimento de rancor. As regras sempre estiveram extremamente claras, e as obrigações eram conhecidas, assim como os riscos da prevaricação.
O meu pai preparou-nos para a vida. E nós estamos-lhe profundamente agradecidos.
O meu pai foi o protótipo dos homens vindos de Portugal na década de 50 do século passado. Baixo, calvo, emanava entretanto uma rara sensação de força. Os olhos vivos, na sua cara resoluta, onde pontificava o nariz sem cana, que tinha partido nas suas aventuras de boxe quando era jovem, transmitia uma enorme decisão e auto-confiança, e igualmente uma ternura que não se suspeitava nos seus gestos. Os braços fortes, as mãos poderosas, eram quase uma contradição na sua figura moldada num metro e sessenta de barro, que se impunha onde estivesse pela sua decisão. Não me recordo dele nalgum momento de lazer. Sonhador, procurava dar forma aos seus sonhos, ainda que atropelasse as etapas e os resultados nunca fossem exactamente os desejados. Tampouco me recordo dele numa atitude de desânimo. A capacidade de se adaptar ao infortúnio, e de retirar forças dos fracassos momentâneos nunca a parece ter perdido, a não ser talvez no fim, quando na luta com o tumor maligno, não conseguiu aceitar a realidade, e encarar aquela luta como a derradeira, apesar de toda a sua vontade de a vencer.
Um entre dezasseis, dos quais sobreviveram doze, era um lutador que desde cedo aprendeu que a sobrevivência tinha que ser ganha a pulso. Nascido nas ilhas atlânticas dos Açores, recordo-me das suas primeiras recordações, quando ia com os irmãos à pesca naquelas águas revoltosas, e nos seus 5 anos, tinha a função de rezar. ‘Reza. Manel, reza’, dir-lhe-iam os irmãos nos momentos mais críticos, e eu imagino o olhar apavorado do menino-homem que seria o meu pai então… Trabalhando desde muito cedo, aos sete anos já procurava ganhar a vida ajudando na mercearia local, sempre teve para com o trabalho um reconhecimento exemplar, como se ali visse o caminho que lhe teria permitido escalar as montanhas dos seus sonhos, ganhar a sua independência, e construir algo seu, do qual muito se orgulhava. Nunca teve muito, mas o suficiente para pôr os sete filhos a estudar, e a tudo o que tinha dava o valor que se dá àquilo que é conquistado com o suor do rosto, e as penas da desilusão, no balanço entre a realidade e o sonho.
O meu pai não foi um pai carinhoso, mas justo. Quando vejo uma foto que tenho dele a beijar a testa de um dos meus filhos, quase sinto ciúme, pois não me lembro de gesto igual para comigo. No entanto, tinha um enorme orgulho nos filhos. De poucas palavras, não recordo muitas conversas. Apenas aquela em que me tratou pela primeira vez como um homem, olhando-me de igual para igual, eu na força da minha adolescência, e me falou nas coisas importantes da vida, na sua perspectiva, deixando-me conduzir o seu Datsun 1200, num passeio pela Ilha. Tão imerso estava nas suas palavras que, no regresso, acabei por cruzar em sentido contrário a Mutamba, nos tempos em que ainda se subia a Amílcar Cabral a partir da Marginal, e se tinha que curvar na Rua da Missão. Felizmente, eram tempos em que também não havia trânsito, e não houve consequências deste acidente de percurso. Noutra ocasião, quando inflamado defendia os meus pontos de vista revolucionários, numa plateia de pessoas mais velhas, de ideias contrárias às minhas, e que me procuravam desqualificar, por imberbe e inconveniente, foi ele que se levantou e deu literalmente um murro na mesa a exigir respeito por mim e pelas minhas opiniões, que eram, aliás, contrárias às dele.
Nas raras conversas que temos, os irmãos, em que emerge a figura do meu pai, a par da enorme confiança que em nós depositava, dando-nos tarefas com responsabilidades bem acima da nossa idade, surgem muitas vezes retratos das ocasiões em que o seu rigor se traduziu por alguma repreensão mais violenta. Um tabefe com as suas mãos calejadas, ou mesmo uma tareia de cinto, previsível porque motivada, em que a vítima se preparava, e vestia antes de se apresentar, mais umas calças e uma camisola, não eram frequentes mas aconteceram. Mas em nenhuma sinto o menor sentimento de rancor. As regras sempre estiveram extremamente claras, e as obrigações eram conhecidas, assim como os riscos da prevaricação.
O meu pai preparou-nos para a vida. E nós estamos-lhe profundamente agradecidos.
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10 de Março de 2009 (Jornal de Angola)
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
Laços que não se apagam
A visita de Raul Castro ao nosso país foi um acontecimento de rara carga emocional. Cuba não nos pode ser indiferente. Admito que não desperte o mesmo tipo de emoção em todos nós. Nem todos estávamos do mesmo lado. Mas todos temos que reconhecer o papel decisivo que nuestros hermanos tiveram no pré e pós 11 de Novembro de 1975.
Para mim, Cuba é o expoente da coerência na luta desinteressada por um ideal. A forma como aquele pequeno país das Caraíbas se envolveu sem hesitações num processo de desfecho imprevisível, com adversários directos temíveis, e sob a sombra do gigante do Norte, é, no mínimo, exemplar. Só o simples facto de ser um pequeno país, com poucos recursos materiais, que só podiam emprestar a enorme força do ideal por que lutavam, e o seu sangue, os tornavam únicos. E foi assim. Cuba não foi apenas o génio e sacrifício de heróis como o Comandante Arguelles, o arquitecto da batalha do Ebo, decisiva para se travar o avanço sul-africano em direcção a Luanda, naquele 1975 conturbado, em que procurávamos salvar uma bandeira. Foi, quiçá principalmente, o espírito exemplar dos médicos, dos professores, dos internacionalistas que por aqui passaram, sempre com humildade e sentido de sacrifício a que não podíamos ficar indiferentes.
A História recente de Angola está indubitavelmente ligada al Caimán… E os reflexos permanecerão por muito tempo. Não só porque ela acabou por ser marcada por decisões que foram tomadas em momentos críticos, e que influenciaram o curso dos acontecimentos, como pelos milhares de jovens que foram acolhidos na ilha caribenha para receberem formação aos mais vários níveis.
Quando Fidel se manteve fiel à ortografia, e fez lembrar que Neto se escrevia com ‘e’, estava a influenciar a História. Quando decidiu que não podia ficar indiferente aos avanços dos carcamanos, e se uniu às FAPLA em direcção ao Calueque, e no Cuito-Cuanavale, estava a escrever a História. Quando, após os acordos de Nova York que levaram à independência da Namíbia (onde estava a continuação da nossa luta), os internacionalistas cubanos regressaram à sua terra natal, com os seus ideais, e os seus mortos, e o sentimento do dever cumprido, estavam a fazer História.
Mas nem só de grandes acontecimentos foi marcada a passagem dos cubanos por Angola. Eu recordo os meus professores cubanos com carinho. A abnegação do professor Santana, na reconstrução do laboratório de máquinas eléctricas do Departamento de Electrotecnia, ou a genialidade do Ivan, nas suas sempre impecáveis aulas de matemática. Os fins de semana que passavam, em zonas do teatro operacional, em acções de guarda a objectivos estratégicos, punham-nos de sentido! A disponibilidade e o rigor que demonstravam, faziam crescer o respeito que por eles sentíamos. Eram os pequenos gestos de quem tinha uma missão que transcendia a simples actividade de leccionar.
A vinda a Angola del Compañero Raul Castro foi um momento de rara emoção. Pelo menos para os que acreditam que se procurou com a independência encontrar um caminho que levasse à justiça social em Angola. A sua visita ao nosso mais velho Lara, foi um gesto que calou fundo. Não se esquecem os amigos.
Há laços que se criam com boas intenções. Outros, com a mistura do suor e sangue. Esses não se podem apagar.
Para mim, Cuba é o expoente da coerência na luta desinteressada por um ideal. A forma como aquele pequeno país das Caraíbas se envolveu sem hesitações num processo de desfecho imprevisível, com adversários directos temíveis, e sob a sombra do gigante do Norte, é, no mínimo, exemplar. Só o simples facto de ser um pequeno país, com poucos recursos materiais, que só podiam emprestar a enorme força do ideal por que lutavam, e o seu sangue, os tornavam únicos. E foi assim. Cuba não foi apenas o génio e sacrifício de heróis como o Comandante Arguelles, o arquitecto da batalha do Ebo, decisiva para se travar o avanço sul-africano em direcção a Luanda, naquele 1975 conturbado, em que procurávamos salvar uma bandeira. Foi, quiçá principalmente, o espírito exemplar dos médicos, dos professores, dos internacionalistas que por aqui passaram, sempre com humildade e sentido de sacrifício a que não podíamos ficar indiferentes.
A História recente de Angola está indubitavelmente ligada al Caimán… E os reflexos permanecerão por muito tempo. Não só porque ela acabou por ser marcada por decisões que foram tomadas em momentos críticos, e que influenciaram o curso dos acontecimentos, como pelos milhares de jovens que foram acolhidos na ilha caribenha para receberem formação aos mais vários níveis.
Quando Fidel se manteve fiel à ortografia, e fez lembrar que Neto se escrevia com ‘e’, estava a influenciar a História. Quando decidiu que não podia ficar indiferente aos avanços dos carcamanos, e se uniu às FAPLA em direcção ao Calueque, e no Cuito-Cuanavale, estava a escrever a História. Quando, após os acordos de Nova York que levaram à independência da Namíbia (onde estava a continuação da nossa luta), os internacionalistas cubanos regressaram à sua terra natal, com os seus ideais, e os seus mortos, e o sentimento do dever cumprido, estavam a fazer História.
Mas nem só de grandes acontecimentos foi marcada a passagem dos cubanos por Angola. Eu recordo os meus professores cubanos com carinho. A abnegação do professor Santana, na reconstrução do laboratório de máquinas eléctricas do Departamento de Electrotecnia, ou a genialidade do Ivan, nas suas sempre impecáveis aulas de matemática. Os fins de semana que passavam, em zonas do teatro operacional, em acções de guarda a objectivos estratégicos, punham-nos de sentido! A disponibilidade e o rigor que demonstravam, faziam crescer o respeito que por eles sentíamos. Eram os pequenos gestos de quem tinha uma missão que transcendia a simples actividade de leccionar.
A vinda a Angola del Compañero Raul Castro foi um momento de rara emoção. Pelo menos para os que acreditam que se procurou com a independência encontrar um caminho que levasse à justiça social em Angola. A sua visita ao nosso mais velho Lara, foi um gesto que calou fundo. Não se esquecem os amigos.
Há laços que se criam com boas intenções. Outros, com a mistura do suor e sangue. Esses não se podem apagar.
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22 de Fevereiro de 2009 (Jornal de Angola)
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