sábado, 17 de janeiro de 2009

O Censo e a Toponímia

As invenções mais importantes para a Humanidade foram aquelas que se transformaram em algo tão essencial ao dia a dia, que passaram a fazer parte das leis da natureza, sem ter o nome do inventor associado. É claro que não falo da gravidade, ‘inventada’ por Sir Isaac Newton!! Essa, é claro, já lá estava, e ele só a descodificou matematicamente. Mas falo de coisas como o controlo da utilização do fogo, da roda, da linguagem e sua estruturação, da domesticação de plantas e animais. Falo dos números. Há um infindável cortejo de invenções elegíveis para este mostruário de coisas indispensáveis à nossa vida actual, e que parece que sempre existiram.

Mas hoje gostaria de abordar a importância da numeração. Não me detendo demasiado nos pormenores, como a invenção do zero, bendita criação árabe, que o génio grego, ou a organização romana, não alcançaram, a verdade é que um mundo sem números teria que ser completamente diferente. Pergunto-me se os números não terão sido uma consequência directa da acumulação. Há um momento em que já não basta dizer ‘muito’ ou ‘pouco’, ‘longe’ ou ‘perto’, é preciso quantificar. E, naturalmente, para a organização das sociedades em sistemas mais complexos, como o Estado, a numeração é fundamental. Não apenas para identificar, como também para poder medir propriedades e riqueza. Para poder estabelecer os impostos. Para controlar.

Eis outra questão que filosoficamente nunca foi resolvida. A contradição entre a liberdade e o controlo. Ainda há países onde se discute se a obrigatoriedade de se ter um bilhete de identidade não atenta contra a liberdade do indivíduo. Mas, por outro lado, parece claro que o Estado também não pode cumprir cabalmente com as suas obrigações sem que haja um controlo das suas populações. Não há planificação sem estatística, e não pode haver estatística sem censo. E censo é controlo. Mas parece fundamental.

Assim como parece fundamental poder localizar qualquer ente jurídico, colectivo ou individual. O que não faz qualquer sentido é um indivíduo, ou uma empresa, colocarem no espaço onde devem escrever o endereço: Rua Sem Nome, Casa Sem Número. Infelizmente isso é o que acontece com muito boa gente, em particular na cidade de Luanda. Quase me atreveria a dizer, com a maioria da gente. Por qualquer motivo, as novas ruas e as novas casas deixaram de estar identificadas. Os bairros lá vão tendo nome porque a vox populi logo se transforma em nome oficial, e assim aparecem nomes coloridos, sem que se saiba bem porquê, como é o caso do Rocha Pinto, Terra Vermelha, Cantinton, Morro Bento ou Talatona. Mas a maioria das ruas permanece por identificar. As casas por numerar. Chegou-se ao cúmulo de vermos empresas, como a EDEL, a numerar as casas nalguns bairros, para poderem fazer contratos com os moradores.

A toponímia é essencial para a organização de uma cidade. A não atribuição de numeração às propriedades cria não só dificuldades práticas ao cidadão, pois este nunca sabe muito bem como indicar onde vive, como afecta tudo o que se relaciona com o mesmo. A polícia, a justiça, as empresas, os bancos, os seguros, têm como denominador comum a necessidade de poder identificar de uma forma inequívoca o local de residência ou o estabelecimento das entidades com quem lida, para poder cumprir com a sua função.

E como será possível fazer um censo sério sem este pressuposto?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Solidários com os povos oprimidos? Ou com os opressores?

As perguntas das crianças são muitas vezes estimulantes pela perspectiva límpida, quase que não afectada por preconceitos ou interesses estreitos. Estou ainda a pensar nas perguntas que ouvi de uma criança sobre o que é terrorismo e sobre o que se está a passar em Gaza.

Essas reflexões misturaram-se com a recordação de quando, até há bem pouco tempo, trabalhava mesmo ao lado de uma escola primária e escutava todas as manhãs a criançada a cantar o hino: “Solidários com os povos oprimidos...”. Palavras redigidas quando a nossa onda era outra. Fico sempre um pouco entristecido ao ouvir as crianças a falarem como papagaios. Fico com medo que estejam a ser preparadas para dizerem uma coisa e fazerem, e tolerarem, o oposto? Talvez não, talvez seja apenas o evoluir de dinâmicas que nos escaparam ao controlo. A nossa onda mudou mas o discurso antigo ficou. Espero que não cheguemos a mudar o hino para “De mãos dadas com os povos opressores...”. Eu sei, eu sei que estas coisas nunca se cantam assim...

Por falar em recordações, veio-me à memória as primeiras vezes que ouvi falar de terroristas e de terrorismo. Era eu ainda criança quando em Angola já se falava na luta contra o terrorismo e os terroristas. Nessa altura as autoridades coloniais portuguesas, e as escolas, onde muitos de nós fomos formados, utilizavam muito esta terminologia para referir os movimentos de libertação... vejo que essa forma de desqualificar quem luta pelos seus direitos é algo que continua. É facto que mesmo quem luta pelos seus direitos usa por vezes de violência contra alvos inadequados. Uma verdade um pouco incómoda. E, por isso, muitas vezes omitida.

Voltando a Gaza. Parece que a contagem já vai em cerca de mil mortos sendo perto de um terço crianças. A criança angolana perguntava-me se aqueles miúdos palestinos (e também os adultos), que estão a ser diariamente mortos, são todos terroristas, filhos de terroristas ou futuros terroristas. Serão os que bombardeiam com aviões e tanques de guerra meros defensores da ordem. Ou talvez pessoas que se estão a auto defender? É verdade que há civis israelitas que são vítimas de foguetes disparados a partir de Gaza.

Lá está a minha memória a incomodar-me... e a trazer recordações de quando vivia na cidade do Huambo, onde eramos vítimas de foguetes ou morteiros disparados dos arredores da cidade. Recordo-me perfeitamente de Jonas Savimbi ter sido recebido, nesse período, na Casa Branca como combatente da liberdade. Imaginam o líder do Hamas, força que foi já escrutinada em eleições, a ser recebido por Ronald Reagan? É claro que não. O Hamas é uma força classificada como terrorista. Como o Nelson Mandela.

Como já devem imaginar, as definições de terrorismo que encontrei não me foram muito úteis para dar uma resposta honesta e clara à criança que estava interessada em saber o que é terrorismo. Encontrei como definição que o terrorismo é o uso sistemático do terror (medo intenso?) para atingir objectivos políticos, religiosos ou outros. Encontrei referências a terrorismo de estado mas sinceramente que me pareceram muito confusas. Por exemplo, George Bush, apesar de ter sido reeleito na base de instigar o medo entre os seus concidadãos ou apesar de ter promovido ataques arrasadores contra vários países (incluindo as suas zonas urbanas), fez isto exatamente sob a bandeira da luta contra o terrorismo. E o lançamento de bombas atómicas sobre cidades, na segunda guerra mundial, também não é apresentado claramente como acção terrorista, apesar de ter visado essencialmente populações civis.

Tudo indica que o termo terrorista é uma etiqueta que por vezes se cola nos nossos opositores para retirar legitimidade às suas aspirações e às suas formas de luta. Quando a etiqueta cola bem, ela pode até ajudar no exercício de tiro ao alvo.

No meio das minhas dúvidas e hesitações lá consegui balbuciar para a criança que o importante é sermos realmente solidários com os povos oprimidos, como se canta nas escolas. E que é uma pena estarmos meio esquecidos de alguns valores que acabaram por ficar apenas nas letras do hino. Tentei convencer o miúdo que é útil entender que há uns que mudam de lado e passam de oprimidos ontem para opressores de hoje ou amanhã. Disse com convicção que descarregar a raiva nos filhos dos opressores, não é algo defensável, é imoral e até de utilidade duvidosa. Ao fazermos isso passamos a ser também opressores, pelo menos dessas crianças.

Mas, quando a criança me perguntou: “Então porque não vais para a rua, com os teus amigos, com cartazes a apoiar esses povos oprimidos no Zimbabwe, em Gaza, e noutros sítios, como se faz em tantas partes do mundo? Porque é que só consegues fazer isso quando Angola ganha no basquete ou no futebol?” gaguejei e olhei para baixo envergonhado. Não estou ainda seguro sobre como vencer esta vergonha, e fazer algo. Advinho que esta vergonha não é só minha.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Desengarrafator III

Um filme de ficção científica feito por nós? Poderia ser mais uma das nossas famosas lições ao mundo. Nem que fosse apenas uma lição de descaramento, como outras que temos dado...

Estou a pensar num guião com a história de um miúdo que tinha feito um carrinho de lata e que estava sempre a emaranhar a corda de puxar o carrinho nas cordas dos outros miúdos. Ele e os amigos não se entendiam pois não tinham descoberto o custo, para todos, da falta de colaboração e da falta de regras (ou do não cumprimento das existentes). Os miúdos cresceram – infelizmente continuando confusionistas - e as suas viaturas evoluíram também tornando-se sofisticadas e mais inteligentes. A relação entre humanos e estas máquinas começou a mudar quando elas começaram a conseguir comunicar. Primeiro era só para avisar os condutores que não tinham o cinto colocado, que as luzes estavam acesas depois de retirar a chave, e outras coisas do género. Mas depois começaram a comunicar também entre si, protestando contra os seus condutores. Isto começou em Luanda, é evidente...

Em Luanda, as viaturas mais evoluídas, depois de observarem o comportamento dos seus condutores, começaram a trocar opiniões, às escondidas, quando estavam estacionadas. Um guarda que sofria de insónia e guardava um parque de estacionamento (um desses espaços abusivamente privatizados) ouviu claramente os carros a comunicarem entre si. A insónia do guarda foi importante para desmascarar o plano das máquinas contra os humanos. Não fosse isso e ele teria dormido como tantos outros guardas, e não teríamos descoberto a conspiração.

O plano dos carrões era simples. Consideravam que na raíz dos engarrafamentos actuais está um passado onde os meninos pouco hábeis emaranhavam constantemente as cordas dos seus carrinhos. Por isso decidiram enviar ao passado uma série de carrões sofisticados para eliminar os referidos meninos. Iriam assim terminar com os engarrafamentos do presente. Daí o nome destas máquinas: desengarrafators.

O guarda ouviu claramento os argumentos que eles avançavam. “Estes indivíduos que nos conduzem parecem menos inteligentes do que nós. Já viram quando decidem bloquear a faixa oposta áquela em que estão a rodar?” dizia um. “Os imbecis não entendem que bloqueando o escoamento do trânsito no sentido oposto geralmente só agravam o problema da sua própria faixa”.

Um outro, cujo dono gostava de ouvir no carro umas boas kizombas, em altos berros, partilhou o seu espanto. “Nas farras destes humanos, quando estão todos a dançar, começa por parecer uma grande confusão mas, olhando com atenção, vê-se a harmonia e coordenação com que se desloca toda a multidão. São muitos, movem-se em pouco espaço, mas não se atropelam nem bloqueiam os movimentos uns aos outros.” O carrão suspirou “Adoro quando fazem aquelas pausas, a meio da dança, nas tarrachinhas. Gosto de ver toda aquela coordenação e sincronização. Parece mesmo algo de muito desenvolvido e faz-me lembrar os tempos em que eu estava na linha de montagem lá na fábrica. Não entendo como eles não conseguem aplicar esta habilidade e harmonia quando conduzem e quando se relacionam.”.

Outra viatura, mais bruta, um Hammer, respondeu com desdém. “Deixa-te lá de lirismos. Na farra a música toca aos berros impondo o ritmo e a regra que serve de base para a harmonia que vês. Os tipos ficam meios surdos e já não ouvem mais regra nenhuma. A lei e a moral não se fazem ouvir aos berros como a música das farras deles… E eles são completamente surdos ao que não se imponha pelo grito e cegos ao que não se exiba pelo tamanho, pelo brilho excessivo e ou pela cor berrante. A única solução para acabarmos com estes engarrafamentos é mandarmos uma máquina ao passado e eliminar aquele amor pela confusão”.

Não tenho espaço para vos explicar como o tal guarda contactou a ANA-Engarramento (Associação dos Naturais e Amigos do Engarrafamento) que decidiu mandar, também ao passado, um Hiace velho mas duro, para defender os meninos confusionistas e salvar assim a desordem do presente.

Falar de moralização e dar o exemplo

Reforçar a família e a escola, e tornar a sociedade menos corrupta e mais solidária, são, em poucas palavras as prioridades defendidas pelo Presidente da República no discurso de fim do ano. Realçou também que ambas as coisas exigem mudança de mentalidade na nossa sociedade. Uma mensagem simples e clara, e por isso apropriada para servir de fonte de inspiração para a acção.

A eficácia – para provocar mudança - deste tipo de mensagem é por vezes limitada pelo cepticismo de quem ouve. Cepticismo em relação à dificuldade da tarefa e em relação ao real compromisso com aquelas prioridades. Seja este cepticismo fundado ou não, a verdade é que a descrença causa, ela própria, bastante dano. A falta de confiança causa paralisia e retira parte da energia necessária para a acção. É importante reconhecer que a “evolução” que o país tem sofrido no domínio da corrupção, da desestruturação das famílias e da educação, tem criado um sistema e uma cultura que se tem vindo a enraizar e que, por isso, não será facilmente desmontado. Chamar a atenção para os problemas e definir metas é importante, mas é provavelmente limitado para reverter práticas – muitas vezes até “premiadas” - que se foram desenvolvendo ao longo de décadas. Mesmo tendo em mente todas as questões acima vale a pena levar a sério – e cobrarmos uns aos outros para que sejam praticadas – as palavras do nosso Presidente.

Vou aproveitar a deixa dada pelo discurso que venho vindo a referir, para defender a necessidade de analisarmos as raízes da corrupção e a forma como ela se mantém e propaga. Questionarmo-nos abertamente sobre o fenómeno e tentar entendê-lo, pode ser o primeiro passo para aumentarmos as nossas chances de sermos eficazes nesse empreendimento de mudar mentalidades.

Várias questões poderão ser exploradas. Por exemplo, será que a corrupção e a desestruturação das famílias tende a verificar-se igualmente em todas as classes ou é um problema dos níveis mais “elevados” da nossa sociedade? (“Elevação”, no sentido em que é usado aqui, refere-se apenas a riqueza material e poder, bem entendido). Já ouvi quem defenda que a crise moral nas sociedades é algo que está enraizado praticamente em todos. Os que defendem esta perspectiva, consideram que os que chegam ao topo não são menos morais do que os outros, são apenas mais hábeis a tirarem partido da imoralidade.

Seja qual for a resposta à questão, não há dúvidas que o comportamento dos ricos e poderosos, mesmo sendo criticado, serve de referência para muita gente. Ou seja, há um papel educativo (ou deseducativo...) no exemplo que os ricos e poderosos dão ao resto da sociedade. Por isso, eles possuem um real poder para provocar mudanças de mentalidade, através do seu exemplo. Poder que raramente usam de forma a moralizar.

Uma outra questão é, em que medida a pobreza e a privação são a raiz (ou, pelo menos, um factor importante) da corrupção e da dissolução familiar. É visível que há muita gente pobre que se esforça por ganhar a sua vida a trabalhar, de uma forma moral, e que se esforça por proteger a sua família. É também gritantemente visível que há muito rico que se apodera do que não é seu e que se comporta na família com a mesma atitude predadora que adopta na sociedade. Mesmo que seja verdade que a pobreza não gere, linearmente, imoralidade ou problemas na família, é evidente que levar uma vida de pobreza e ser, simultaneamente, constantemente exposto à riqueza exibicionista e acumulada pela via da esperteza, é susceptível de corromper. Parecem também evidentes os danos que causa à coesão familiar, a pobreza que, por exemplo, força as crianças a viverem na rua, sem acesso à atenção da família ou dos serviços de educação.

Deixo a sugestão que uma maneira de ajudarmos a concretizar a mudança de mentalidades referida pelo Presidente da República é (1) exigir um comportamento moral e exemplar, aos que estão em posições públicas, e servem por isso de modelo ao comportamento de outros, e (2) combater a pobreza retirando a pressão terrível que sofrem as famílias com menos posses e que acaba por se reflectir na sua coesão.

Membro do OPSA

sábado, 10 de janeiro de 2009

Reflexões Avulsas

Não é a proximidade que junta as pessoas, é a vontade.

Desde que o homem é homem que se questiona. Talvez seja esse exactamente o traço que o distingue dos outros animais. A dúvida leva à evolução, mas tem igualmente, em cada ponto de interrogação, o germe da infelicidade, do desconforto.

Das perguntas que me faço com mais frequência é a de qual é realmente o grande objectivo de quem tem que liderar uma comunidade, um País: trazer-lhe a satisfação material, ou a felicidade? Colocando a questão de uma forma mais objectiva e perceptível: quem vive uma vida mais satisfatória, o ‘empresário’ que acumulou riqueza material, tem dois 4x4, e três viaturas de mais ou menos luxo, que abarrotam o quintal da sua vivenda principal, num dos condomínios fortificados do Luanda-Sul, cinco filhos com necessidades variadas (há um que até tem o gosto pelo estudo, e fez um masters em Londres, outro gosta de fazer umas ravs pelas noites luandenses, e os outros ainda não cresceram o suficiente para definir as tendências), alimenta pelo menos mais uma família, neste afã de ser generoso, e, claro, vive preocupado com as formas de fazer crescer o negócio, pois parar é morrer, ou o chefe de família koi-san, que repete os rituais que os antepassados praticam há séculos, e se reúne com a comunidade todas as noites para uma boa história à volta da fogueira, partilhando os bens recolhidos ou caçados por todos, sem mais bens do que aqueles que consigo carrega, mas com olhos para ver o céu que, por aqueles lados, continua a ser estrelado, maravilhosamente estrelado? Ou, num exemplo talvez mais directo: há mais satisfação num lar cubano, em Cuba, com uma maior protecção social, solidariedade, e menos gadgets de última geração, ou num lar cubano em Miami, de um balsero acolhido na gigantesca roda americana?

Um dos paradoxos do nosso tempo é a constatação de que as sociedades quanto mais materialmente ricas são, mais problemas derivados da solidão e falta de solidariedade, enfrentam. Os assassinatos sem sentido, os suicídios, as vinganças, acabam por coroar vidas vazias, em que as pessoas vagam quais universos perdidos na escuridão dos dias.
Para muitos, tudo justifica os tais cinco minutos de fama. É claro que se puder ser mais do que cinco minutos, melhor.

Começamos a sentir, no nosso país, os efeitos dessa cultura de uma forma preocupante, diria mesmo, assustadora. Quando se escorraçam os pais, e se maltratam crianças inventando-se os mais variados pretextos. Quando a porta está aberta para qualquer charlatão nos comprar a alma em troca dos mais variados dízimos, prometendo a conquista do bem estar com a intervenção directa do altíssimo, algo está mal. O olho gordo do vizinho incomoda, e, a comunidade deixa de ser um refúgio, para ser uma ameaça. O que se valoriza é o que se tem, e não o que se faz.

A ênfase nos valores morais do discurso de Sua Excelência o Presidente da República, não poderia ser mais apropriada. Mas sou apologista dos pequenos gestos. Ainda que se possa procurar menosprezar um acto vindo de um país que encarna a cultura do imediatismo, o recente cartão amarelo mostrado aos responsáveis da indústria automobilística americana, que foram solicitar aos órgãos de decisão do seu país uma ajuda de muitos milhares de milhões de dólares, para salvar as suas empresas, mas não prescindiram dos seus jactos particulares, não deixou de ser uma interessante fábula. Digna de Esopo.

Para que possa ter impacto, não basta pregar a moral, é preciso praticá-la.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Frontalidade? Talvez sob o efeito do álcool…

A bebedeira soltou-lhe a língua e o espírito. Acabámos por ouvi-lo exprimir ideias interessantes, embora um pouco cruas. Presenciámos a uma frontalidade a que não estávamos habituados. Algumas daquelas ideias estavam até em embrião em muitos de nós mas, as várias inibições, interesses e o sentido de auto-preservação, sempre nos levaram a calá-las dentro de nós. Mais do que calá-las, abafávamos até o seu desenvolvimento.

O tipo não tinha sequer bebido tanto que se lhe enrolasse a língua, nem nós estávamos tão próximos que lhe conseguíssemos sentir o hálito. Foi a expressão livre e corajosamente frontal, descuidada até, que nos levou a pensar que havia ali álcool. Mas, foi agradável ouvi-lo. Aquele sentido de liberdade que se podia sentir na forma como se exprimia chegava a ser invejável. Era invejável especialmente naquele nosso ambiente onde todos pesavam constantemente o que dizer, como dizer, onde dizer, a quem dizer, calculando riscos, benefícios e custos, actuais e futuros. Um ambiente onde se seguia a regra de só dizer algo crítico para destruir ou enfraquecer um “inimigo” ou “competidor”. Tal regra não foi escrita nem afirmada em lado nenhum - mas cumprida com mais rigor do que muita lei escrita e aprovada pelas instituições apropriadas. Tal regra parecia ter até cláusulas como: o que for feito ou dito pelos inimigos ou competidores deve ser deturpado para lhe dar uma conotação negativa. E, também: as suas realizações devem ser transformadas em erros. Outra cláusula: se for amigo ou aliado, devemos ignorar as suas fraquezas (pelo menos não falar delas) ou então apresentá-las como virtudes. Assim, o amigo / aliado, poderá vir a retribuir o favor e, quando alguns dos nossos disparates ficarem visíveis, sempre teremos quem nos defenda. Não que defenda a justiça, mas que nos defenda a nós.

Naquele ambiente, mesmo no confronto de ideias, seguiam-se tácticas militares. Em particular as de guerrilha: atacar, fugir, e voltar a atacar noutro local. Nunca procurar um engajamento franco de troca de ideias. Compreensível, se considerarmos que o jogo não era, naquele ambiente, de trocar ideias, comunicar ou procurar a verdade. Tratava-se mais de destruir ou enfraquecer o inimigo, conquistar espaço e influência, e para isso mobilizar e apoiar aliados (e doadores?). Conquistar espaço, notoriedade (num certo tipo de mercado?). E quem seriam os inimigos? Fácil! Todos os que pensavam de forma diferente. Tentar entender o pensamento dos outros exige tempo (para escutar, para reflectir, para questionar com honestidade), e tempo é algo que não temos. Por questão de segurança, neste ambiente colocavam-se estes, que não entendíamos, na lista dos inimigos. É evidente que eram também inimigos aqueles que poderiam ser vistos como potenciais competidores pelo espaço que pensávamos ocupar, de preferência em regime de exclusividade. Naquele ambiente intelectualmente estreito, ter monopólio do discurso era considerado uma vantagem. Alguns chamaram-lhe complexo de Tarzan: a necessidade de nos sentirmos o único indivíduo (ou organização) pensante no meio duma multidão de macacos.

O discurso daquele indivíduo, etilicamente esclarecido e libertado, prendeu a atenção de todos nós. Apesar de não dizer grandes novidades – pois muito do que ele dizia em voz alta já muitos de nós sussuravam há algum tempo -, era uma estimulante novidade vê-lo solto das regras, compromissos, alianças e tácticas que tão tristemente nos limitavam. O álcool aproximou-o da verdade e deu-lhe limpidez ao discurso e ao raciocínio.

Voltei a encontrá-lo, no dia seguinte, quando ele recordava, incomodado, os excessos de bebida e de coragem, no dia anterior. Estava fisicamente indisposto e arrependido das verdades que tinha dito. Sentia que estava agora exposto (socialmente e ao nível do fígado) e que isso poderia ter alguns custos (na sociedade e na clínica). Eu lá tentei animá-lo e encorajei-o a sonhar com o dia em que iremos saborear a liberdade de nos exprimirmos com frontalidade e segurança sem os efeitos colaterais de para isso termos de recorrer aos “preciosos líquidos” que nos deixam etilizados e soltos. Concordámos que acelerar a criação desse ambiente, pelo menos na sociedade civil, não seria nada mau.

Combinámos então que ambos tentaríamos, numa primeira etapa, conquistar para o nosso sonho a Livia França da AJPD e o Luiz Araújo, da secção da SOS Habitat no exílio… A primeira, para dedicar mais tempo a ouvir atentamente, e sem preconceito, e debater ideias com aqueles de quem discorda (debater com quem concordamos é um pouco aborrecido, não?). Ao segundo para procurar as nuances que o mundo sempre oferece: para além da cor branca e da cor preta, é bom não ignorarmos a infinidade de cinzentos. Já para não falar de todas as outras cores. Ver todas elas torna o mundo mais complicado mas talvez também mais rico e com menos inimigos para combater. Até porque esses “inimigos” podem não passar do equivalente aos moinhos de vento que D.Quixote tanto, e ingloriamente, combatia. Começar por eles seria também uma forma de demonstrar reconhecimento, sincero, por me terem inspirado a escrever este texto.

Liderar ou mandar?

Algo que observo frequentemente entre nós é a tendência para minar a liderança. Creio notar toda uma série de técnicas usadas vulgarmente para fazer isto. Como resultado criam-se condições para apenas “sobreviverem” as lideranças que associem duas características (da valor duvidoso...): (1) querer mandar e (2) ser capaz de se impor pela “força”. Lideranças com um estilo mais de facilitador / visionário, dificilmente sobrevivem se não possuírem as duas características que refiro acima. Porquê?

• Falta-nos auto disciplina. Dito de outra forma, seguimos pouco a princípios e mais à autoridade. Dito ainda de outra forma, para cumprirmos uma regra é necessário que esteja por perto uma “autoridade” a quem nos devemos subjugar. Se a autoridade não estiver, ou se não se souber impor, temos a tendência para abandalhar o cumprimento da tal regra (mesmo que compreendamos a sua razão de ser)
• Temos dificuldade de olhar para a liderança como um serviço ao grupo. Um serviço que ajuda o grupo dando-lhe coesão e direcção e, por isso, eficácia. Temos mais tendência para olhar para a liderança como uma espécie de prémio para quem se conseguiu guindar ao topo. Um prémio por ser o mais rico, o mais autoritário, o mais velho, o mais forte fisicamente, etc.
• Das características acima resulta que o líder define as regras de cujo cumprimento deve ser dispensado e os privilégios especiais de que deve beneficiar. Ter privilégios e estar acima das regras é algo que não choca ninguém uma vez que o líder está na posição mais de vencedor de uma competição do que na de alguém a prestar um serviço ao grupo, escolhido pelo grupo pelo seu mérito e capacidade para prestar o referido serviço.

Porque esta forma de encarar o que é liderança é algo partilhado por demasiados de nós, é natural que regularmente o líder tenha de “colocar no lugar” os possíveis competidores, ou apenas os que quiserem testar a firmeza de quem manda. É também natural que regularmente os mais atrevidos do grupo façam algumas tentativas para “abandalhar”, apenas para testar as suas chances de se tornarem alternativas, ou apenas para testar a solidez de quem está naquela posição. Ou ainda apenas para criar um pouco de confusão e, no meio desta, aumentar as possibilidades de retirar algum benefício de um ambiente desestruturado.

O que me parece apaixonante é encontrar estes tiques (nos grupos e nos líderes) a manifestarem-se tanto em ambientes onde está em jogo um poder considerável como em ambientes onde se lida com um podersinho minúsculo. Recordo-me de me terem contado sobre um ministro do GURN ter chamado um seu vice-ministro que estava a ficar demasiado visível, para lhe perguntar, com maus modos, se ele sabia quem mandava. Em pequenos grupos de que faço creio observar constantemente este tipo de dinâmica.

Resisto a acreditar que seja inevitável que o exercício da liderança tenha obrigatoriamente de seguir esta lógica. Creio até já ter visto, directamente, grupos a funcionar segundo a tal lógica da liderança como uma função ao serviço do grupo. A lógica do líder como um vencedor parece-me mais o resultado de um certo “primitivismo” e imaturidade na forma de nos relacionarmos com o poder.

De onde virá isto? Embora não seja propriamente um especialista eu colocaria algumas possibilidades.
• Desde crianças que vamos sendo condicionados a vergar-nos mais à força do que à razão. Atrever-me-ia a dizer que na infância de muitos de nós foram comuns as situações onde o menino mais forte, fisicamente, é colocado a tomar conta dos outros. Ou, ainda, as situações onde os conselhos eram complementados com ameaças, ou mesmo uns tabefes. Ou colocar como razão para impor algo, o simples argumento de recordar quem manda.
• Desde criança que não estimulam em nós a capacidade de assumir as funções de liderança. Quando muito somos ensinados que devemos conquistar espaço pelo pulso. Condicionam-nos assim a entender que o mérito de liderar é essencialmente o de ser capaz de conquistar as coisas a pulso.

Será possível ser diferente? Acredito que sim. Creio já ter observado momentos, raros, de liderança realmente partilhada e de elementos de um grupo a reforçarem a liderança de cada um dos membros desse grupo. Para tornar isso mais comum é necessário que se cultive em cada um de nós a capacidade de lidar com as ansiedades e as necessidades das funções de liderança. É necessário que o grupo desenvolva a capacidade de apoiar os líderes com mérito (estou a falar de outros méritos para além do de ter capacidade de consolidar o seu poder) e de lhes retirar o tapete no caso de eles mostrarem estar demasiado afeiçoados ao gosto por mandar e aos benefícios que retiram dessa posição. Necessitamos de grupos que contribuam para que cada um desenvolva autoconfiança e algumas habilidades como a capacidade de estruturar o trabalho em grupo ou a de comunicar de forma clara com um grupo. Isto exige um esforço consciente para mudar uma cultura que está profundamente enraizada em nós. Basta olhar para os estilos de liderança que, aos vários níveis, acabam geralmente por se afirmar entre nós.

Constituição à mesa

Prestar atenção à conversa na mesa ou fila do lado, na sala de espera, restaurante, ou meio de transporte, não deve ser novidade para ninguém. As conversas que não nos dizem respeito despertam mais atenção, mas esta que escutei, e sobre a qual vos quero falar, não é propriamente sobre um assunto que não me diga respeito. Era sobre a constituição, e sobre a forma de eleição do presidente … Mesmo não sendo nem um doutor em leis (constitucionais ou outras), nem candidato ao posto, acredito que o assunto também me diz respeito.

Já vi defender o princípio de deixar estas discussões para os juristas e para os políticos por serem eles os especialistas no assunto. Creio já ter descoberto, desde há muito tempo, que em qualquer discussão ou negociação, o conhecimento joga um papel, mas os interesses jogam muitas vezes um papel ainda maior. Os peritos, como todos os outros, podem perfeitamente colocar o seu conhecimento ao serviço de interesses. O que não tem nada de errado, desde que exista a possibilidade de os negociar.

Mas voltemos à discussão que bisbilhotei, e perdoem-me se a minha transcrição não fôr muito fiel. Não tomei notas, nem tinha um gravador, e aquilo que retive tem que ver com o meu entendimento, limitado, destes assuntos. Simplificando o que ouvi para não vos maçar, havia naquela conversa um que valorizava a lei, e lhe dava importância, e um outro que tinha uma posição mais “pragmática”. Para quê perder tempo a discutir a constituição de forma ampla? Para quê perder tempo e dinheiro com isso? Dizia este último. O argumento era que a lei fica essencialmente nos papéis e acaba por ter um peso mínimo nos nossos assuntos do dia-a-dia. Para além, dizia ele, de já termos muitas leis, regulamentos, e tratados internacionais assinados por Angola, e cujo cumprimento é relativamente débil. Porque não investir mais no cumprimento destas?

O outro, embora reconhecesse o problema do pouco respeito pela lei, defendia que uma das razões por detrás desse problema é ser raro o envolvimento dos cidadãos na discussão das leis quando elas estão a ser preparadas. A discussão ampla dos princípios e das implicações de uma ou outra formulação deveria envolver todos. E defendia que quando não se participa, é mais fácil não se conhecer, e criam-se as condições para não se aplicar na prática as leis que são aprovadas. Por isso, dizia ele, é necessário fazer perceber que a discussão da constituição pode ser importante para todos nós. Muitas vezes esquecemo-nos que as regras (leis, tratados ou outros) servem para limitar o poder dos poderosos. Mesmo que os poderosos saibam tirar melhor partido das leis existentes, mesmo que eles sejam mais influentes no momento de criar a lei ou a regra, a ausência de regra ou de lei prejudica mais os mais fracos. A ausência de lei tem um nome: lei do mais forte.

O pragmático não se deixou convencer. Para ele a nossa sociedade prefere mesmo funcionar sem muitas regras, pois todos sonhamos que no meio da confusão podemos retirar um benefício superior ao que o direito e o mérito nos dariam. É o Luanda dá Sorte, mas aplicado a tudo e a toda a sociedade... Em vez de trabalhares, acumular riqueza que produzes e poderes prever o que vais obter, não é melhor tentares a sorte, no meio da confusão das bolas a girar, e esperar por um prémio desproporcionadamente grande se comparado com o esforço que colocaste na compra do bilhete? Porquê esperar o resultado do mérito? Não vês que a esperteza pode dar-te resultados bem mais espectaculares que esses do mérito?

Estava com uma enorme vontade de entrar na conversa e de atirar com o argumento do custo que tem para todos (e portanto para cada um) estar sempre a funcionar numa lógica de totoloto - no trânsito, na política, no emprego... Mas os tipos já estavam a ficar exaltados e meio agressivos, e o “pragmático” era bem constituído e bem mais forte do que eu e o outro tipo juntos. Preferi não testar se naquele caso se aplicaria ou não a lei do mais forte… e continuei calado a bisbilhotar, disfarçando o meu interesse.

A conversa ainda ficou mais tensa quando um deles trouxe para a discussão a forma de eleição do Presidente da República. Mas isto é assunto para o próximo artigo, para além de ser apenas um dos muitos assuntos importantes a serem definidos numa nova constituição.

O que é certo é que saí frustrado por não ter tido a possibilidade de dar a minha opinião. Tal como disse um deles, acredito que participar é o primeiro passo para dar a possibilidade destas regras e ideais de justiça saírem do papel e tomarem conta da sociedade.