quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O Cabaz

Chegou a época do Natal, e a dos cabazes.

Cabaz é um termo que significa um conjunto de produtos. Mas, no nosso contexto, ele é quase sempre associado à oferta que se vulgarizou fazer nesta época do ano, e que inclui frutos secos tais como nozes e avelãs, vinho, bacalhau e azeite doce.

O cabaz parece-me mais um anacronismo que está a custar a passar. Sem nunca ter feito muito sentido, em particular no que respeita à sua composição, a sua popularidade explicava-se, num período de muito menos oferta do nosso comércio, pois permitia ter algo diferente numa época especial para a maioria das pessoas. Afinal, o bacalhau não deixa de ser peixe seco, e sempre enriquecer o calulu, mesmo se não for regado com azeite doce… Mas hoje, não faz o mínimo sentido. Em particular quando o mesmo é imposto. Os trabalhadores, sejam eles de uma instituição pública ou privada acabam por receber um prémio não necessariamente do seu agrado, quando seria muito mais lógico eles receberem esse prémio em dinheiro, e poderem aplicá-lo onde e como bem entendessem. Não consigo deixar de imaginar alguém que precisa de uma ajuda ao orçamento familiar para comprar algo importante para os filhos, ou para eles próprios, e que chegam a casa com avelãs e nozes, e, os mais afortunados, com uma garrafita de vinho do porto.

O que me parece essencialmente prejudicial no cabaz é a forma como ele fere todo o tecido económico nacional, e coarta a liberdade de escolha de quem o recebe compulsivamente. Promovendo produtos importados, ele impede que os que são produzidos localmente sejam seleccionados. E isso não só não é um estímulo para a economia como é particularmente injusto para quem está a investir numa rede comercial de qualidade, pois uma parte considerável dos cabazes vem em processos de importação directa, em particular para as grandes empresas públicas e privadas, agregando muito pouco a um mercado em expansão e cheio de vitalidade. Por outro lado, quem recebe, acaba por ficar com produtos que dispensaria. O mesmo se passa com a distribuição de brinquedos…

É importante enfatizar que não tenho nada contra quem goste de bacalhau, ou nozes. Eu, até gosto! Ou contra quem pretenda oferecer brinquedos aos seus filhos. Estão no seu direito. O que me parece é que devemos deixar as pessoas fazer as suas próprias escolhas. E, se tiver que haver alguma promoção, em particular através de aquisições financiadas pelo Estado ou instituições estatais, que tal incida sobre produtos produzidos localmente. Caso contrário, estamos a dar tiros no nosso próprio pé. Uma das consequências negativas da globalização é a criação de hábitos que só beneficiam quem tem mais poder de persuasão através de mecanismos de publicidade. E quem domina os media são os ditos países do primeiro mundo.

As modas alteram velhos hábitos, criam novos, e têm sempre a intenção de vender. Se concordamos que não temos que ser escravos do tradicional, e entendemos a mudança, pensamos ser necessário estar atentos às implicações económicas que a mesma promove. E isso não é xenofobia, é pragmatismo.

A Vitória do Mérito

Não sou dos que acreditam em milagres. Prefiro acreditar que os resultados são a consequência do sacrifício consentido, do trabalho, e da capacidade que se tem de análise da situação sobre a qual se pretende intervir. Estou consciente que nem sempre o resultado é directamente proporcional ao esforço desenvolvido. A quantidade de factores que pode influenciar o resultado, em particular em experiências com forte componente social, é tão grande, que nunca é possível saber com absoluta certeza o que vai finalmente acontecer. E é claro que quando há factores que influenciam o resultado, tal como a corrupção, o nepotismo ou o preconceito, pode não haver esforço que resulte.

A vitória de Obama foi uma pedrada no charco da política tal como usualmente é feita. Se é verdade que o estado actual da economia americana, e a sua precária posição internacional, onde o nível de contestação às suas políticas está em crescendo, criaram condições especiais, que acabaram por afectar o órgão mais sensível dos americanos, o bolso, não deixa de ser notável a eleição de um presidente de uma das minorias, num país tão marcado por fracturas criadas na base do preconceito. Há, no entanto, um enorme conjunto de perigos na sua trajectória como presidente do país mais poderoso do mundo, o mais pequeno dos quais não é, certamente, o excesso de expectativa que todos têm no seu desempenho. Como me disse um amigo, parece que chegou o novo Messias! E aí voltamos aos milagres…

Os desafios que se colocam a Obama são enormes. Ele tem não só que reverter a tendência da economia nos Estados Unidos, como melhorar a prestação ambiental resolvendo o problema energético e não afectando a competitividade da indústria, manter o papel de liderança do seu país sem ferir as pretensões dos seus aliados, controlar as potências emergentes, sair do Iraque com um mínimo de dignidade, combater os extremismos, agradar aos seus eleitores e ainda ser o ‘nice guy’ que todos esperamos que olhe para o Terceiro Mundo de forma diferente.

Não podemos esquecer que o poder de qualquer presidente, e em particular nos Estados Unidos da América, não é tão absoluto como se pode pensar. O homem mais poderoso do mundo tem que satisfazer uma infinidade de grupos de pressão, para além de lobbies poderosíssimos como o dos petróleos e o da indústria do armamento. E tem que sobreviver!

Mas o importante desta eleição é que parece que estamos perante alguém que não só é brilhante, mas genuíno nas ideias e posições que defende. Alguém que não parece; à partida, comprometido com os elementos mais nocivos do sistema, mas que, pelo contrário, tem um assinalável percurso de intervenção social. Alguém que herdou uma situação que lhe permite pensar na mudança de uma forma muito mais radical que os seus antecessores, pois existe uma predisposição para tal, dada a gravidade da situação. Alguém que foi eleito, apesar de todos os obstáculos que lhe foram colocados. Apesar dos fantasmas que foram sendo evocados.

O importante desta eleição, foi termos assistido a algo diferente, bom e reconfortante: uma rara vitória do mérito sobre o preconceito.

Uma lição sobre a qual nos cabe reflectir.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Coordenação, Legitimidade e Representatividade nas OSC

O Quê?
O que tenho a dizer está estruturado em quatro partes:
(1) Alguns conceitos. Não propriamente definições ou uma abordagem teórica. Apenas uma introdução sobre o sentido que dou a alguns dos termos.
(2) Realço alguns elementos do nosso ponto de partida. Qual é a nossa realidade actual nestas questões de coordenação, representatividade e legitimidade.
(3) Identifico alguns desafios que me parecem comuns, e preocupantes.
(4) Sugiro sobre possíveis mecanismos para melhorar a coordenação e a criação de estruturas representativas e legítimas, e, por isso, mais eficazes

O significado que dou a algumas destas palavras
Legitimidade é algo relativo. Ninguém tem legitimidade em relação a tudo nem em todos os momentos. A legitimidade pode ser dada pelo quadro legal, por aspectos culturais (por exemplo, muitas vezes considera-se que um mais velho tem mais legitimidade para se pronunciar sobre determinado assunto do que um jovem). Há pois toda uma série de regras na sociedade, que conferem, ou retiram, legitimidade a alguém ou a um grupo, para fazer ou dizer algo. Eu posso ter legimidade para falar como representante de um grupo se esse grupo me tiver dado um mandato para isso. O conhecimento, a experiência, o reconhecimento público, o ter recebido um mandato de alguém, são tudo possíveis fontes de legitimidade. Vamos ver, mais à frente, que temos por vezes problemas com isto, na prática.

Representatividade? Porquê recorrer a mecanismos de representação? Porque o exercício directo dos nossos direitos é, por vezes, difícil. É difícil que todos nós possamos participar em todas as discussões que nos dizem respeito. Uma possível solução é escolhermos alguém que nos represente. A representação permite-nos assim participar de forma indirecta. Participar por interposta pessoa ou organização.

Coordenação? Demasiadas vezes, e erradamente, associada com chefiar e mandar. Infelizmente não se dá suficiente atenção às funções que permitem coordenar: a troca de informação e o concertar da tomada de decisões. Tornar a acção de um conjunto de indivíduos ou de um conjunto de organizações em algo harmonioso, consertado e com um propósito comum.

Sociedade Civil? Não um sector ou um conjunto de organizações. É mais um espaço onde vários tipos de organização se movimentam e vários tipos de interesses se negoceiam. É comum que o Estado (entre nós, em Angola, e noutras paragens) também use actores para agirem no espaço da sociedade civil. Este espaço de negociação é claramente diferente do espaço do Estado ou do mercado.

Como estamos em termos de coordenação, legitimidade e representatividade nas OSC
Temos plataformas que são tratadas como representando outros. Temos, por exemplo, a UNACA (União Nacional das Cooperativas de Angola, creio), uma organização que se apresenta como representando as cooperativas de Angola e, outro exemplo, o FONGA (Forum das Organizações Não Governamentais Angolanas) que se apresenta como representando as ONGs Angolanas. Ambas são tratadas pelos doadores, pelo Estado e por muitos de nós, como representando as cooperativas e as ONGs, respectivamente. Mas, não existem processos activos para garantir que estas organizações de organizações sejam realmente legítimas para a função que dizem ter (entre outras, representar aqueles “sectores”) – são apenas dois exemplos mas poderíamos dar outros. Não se exige sequer que se mantenham os mecanismos para garantir a representatividade dos seus diferentes orgãos. Não há portanto a preocupação que quando estas falam em nome das cooperativas ou das ONGs (mantendo o exemplo), isto resulte de um mandato que lhes tenha sido dado por aqueles conjuntos de organizações (cooperativas e ONGs).

Nós (cidadãos e organizações), raramente nos damos ao trabalho de exigir que nos espaços da sociedade civil onde se negoceia com outros "sectores" (Estado, doadores, privados), estejam indivíduos que representam realmente as organizações da sociedade civil. Por exemplo, os Conselhos de Auscultação e Consertação Social (comunais, municipais ou provinciais), reservam lugares para representantes da sociedade civil. Quem escolhe esses representantes? Normalmente deveriam ser os que são representados a fazer a escolha. Viria daí a representatividade. Mas, muitas vezes, permitimos que a escolha seja feita sem o nosso envolvimento – por passividade, por medo, por falta de tempo que gera um determinado tipo de passividade. Acontece haver "representantes" que se escolhem a si próprios ou serem escolhidos por aqueles com quem negociarão... Raramente exigimos participar no controlo da escolha dessas pessoas que nos representarão e ainda mais raro é controlarmos as posições que eles defenderão ou que resultou dos espaços onde participaram.

Temos também dificuldade em exercer funções de coordenação (na lógica referida acima de troca de informação e facilitação de tomada de decisões). Raramente cooperamos com a função de coordenação. Por exemplo, estando alguém no papel de circular informação, encaminharmos para ela informação e facilitando assim que esta chegue a um grupo alargado. É comum consideramos que o coordenador deve ser o chefe. E, ou o chefe se impõe e obriga cada um a submeter-se à sua autoridade ou não colaboramos com as funções que permitem coordenar a acção conjunta. O que normalmente resulta em cada um puxar para o seu lado. Neste aspecto temos até dificuldade em discutir de forma frontal, sistmática e produtiva, as nossas ideias. Por exemplo, o secretariado do FONGA achou por bem não estar presente na II Conferência da Sociedade Civil e tem regularmente evitado a discussão sobre coordenação com legitimidade e representatividade. Nós aqui na conferência não estamos seguramente de acordo em tudo. Provavelmente estaremos de acordo em algumas coisas. Ou, alguns grupos podem estar de acordo em algumas coisas e em desacordo noutras. A composição destes grupos em torno de um determinado acordo seguramente que muda consoante o tema. Estar presente em espaços, mesmo discordando de muitos dos presentes, é algo a que temos de nos habituar. Ir à luta para defender a nossa perspectiva - sem considerar que os outros são inimigos (ou possuem uma agenda escondida) - é algo que deveria fazer parte da imagem de marca da sociedade civil. Esta cultura é algo que estamos de construir. Este tipo de debate poderá contribui para uma tal construção.

Desafios profundos
Para além do que dissemos acima é também raro que os representantes prestem contas àqueles que representam. Aqueles de onde lhes vem o mandato. Mesmo nas nossas ONGs, embora seja comum termos assembleias de membros ou de associados, é mais comum que a prestação de contas seja feita aos doadores e à UTCAH (Unidade Técnica de Coordenação das Ajudas Humanitárias). Prestam-se contas a quem se entende como tendo poder... Esta cultura parece ser partilhada tanto pela classe política como pela sociedade civil.

Acontece também que após, elegermos alguém, ao longo do exercício do seu mandato os eleitos evoluam para chefes e deixem de necessitar de renovar os seus mandatos. A sua legitimidade passa a vir do seu estatuto de chefes e da sua afirmação como tal. Quer dizer, levantam voo e deixam-nos em terra. Isto poderá estar ligado a um aspecto da nossa cultura política: a preferência por estruturas hierárquicas e autoritárias em vez de estruturas em rede e horizontais. O líder que tente exercer uma função de partilha, facilitação e mobilização de esforços conjuntos tende a ser aquilo que nós chamamos de “abandalhado”. O líder que não for capaz de dar uns murros na mesa, uns bafos e conquistar o seu poder, é visto como um “boélo” que não devia sequer estar naquela posição. Este tipo de cultura, raramente assumida e várias vezes disfarçada por detrás de um discurso de participação e cidadania cria um desafio real à construção de mecanismos de coordenação legitimados e controlados pelo grupo, na base de mandatos claros e limitados, e na representatividade das estruturas.

Surge a pergunta: será que para sermos eficazes devemos, por enquanto, continuar a permitir estes estilos autoritários e hierarquizados e progressivamente irmos desenvolvendo uma cultura diferente? Será que uma lógica em rede, participativa e igualitária, apenas produzirá uma enorme frustração por não chegarmos a lado nenhum e gastarmos toda a energia a lutarmos individualmente por um espaço de afirmação? Parece um desafio central para a sociedade civil angolana (e para a sociedade angolana, no geral). Colocando de uma forma mais crua o dilema é: vamos praticar mais o que defendemos verbalmente ou vamos ter mais preocupação com a eficácia, arriscando algumas concessões em relação à participação e legitimidade? Continuaremos a permitir que os tais líderes autoritários desempenhem o seu papel? Serão eles necessários para que as coisas aconteçam?

Possíveis pistas para melhor coordenação
Sem estruturas fortes e que possam representar o conjunto de interesses e visões da sociedade, teremos dificuldades em sermos ouvidos e sermos eficazes. Sermos ouvidos, e, também, sermos exigentes com o nosso próprio "sector" (auto-regulação), com o governo e com os doadores. Prestarmos contas, mas sermos também competentes a pedir contas, através de estruturas fortes, representativas e legítimas. Um dos princípios de funcionamento de tais estruturas deve ser a renovação dos mandatos dos líderes. Não deixar que ninguém cristalize na liderança.

Um outro princípio é exigir que estas lideranças prestem contas, regularmente, aos membros das suas organizações e às plataformas de organizações. Isto deve ser-lhes exigido, e quando não devidamente cumprido deve ter-se a coragem de retirar o mandato de uns líderes e atribuí-lo a outros. Praticar este jogo nas nossas organizações da sociedade civil é fundamental para o desenvolvimento de uma cultura política mais democrática e realmente assente na participação e cidadania.

Outro princípio fundamental é o de facilitar o acesso à informação. As pessoas nas várias aldeias, das várias partes do país, devem ter acesso a informação sobre o que está a ser discutido e o que está a ser negociado. Isso é a base para poderem desenvolver uma opinião e exigir das suas estruturas (associativas, políticas, ou outras) que cumpram com mandato que lhes for dado. É pois necessário garantir que a informação circule nos dois sentidos. Para além de serem informadas as pessoas devem ter a possibilidade de ser ouvidas e as suas opiniões devem influenciar os espaços onde as decisões são negociadas e tomadas.

Possíveis critérios para construir estruturas nessa lógica poderiam incluir: (1) o critério geográfico – garantir que as pessoas de todo o território tenham uma chance de participar e (2) o critério temático – garantir que os que trabalhem ou se interessem pelos diferentes temas (criança, HIV-SIDA, segurança alimentar, direitos humanos, etc) tenham a possibilidade de fazer ouvir as suas experiências, soluções e prioridades. Como cruzar estes dois critérios? Como garantir que as nossas plataformas e mecanismos de auscultação e concertação, tenham esta representatividade e abrangência?

Mas, em todas estas estruturas, mecanismos ou processos, estará sempre presente o dilema já referido: que equilíbrio entre a lógica do funcionamento em rede – onde não há hierarquia e onde pode existir um vazio de liderança - e um funcionamento na base de lideranças que empurrem e façam as coisas acontecer? Que equilibrio entre a lógica de rede e a lógica hierárquica?